segunda-feira, 22 de março de 2010

ISABELLA NARDONI. MAIS UM CRIME SEM RESPOSTA OU A SOLUÇÃO AOS OLHOS DE TODOS???

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza 

Vamos refletir em cima do que nos foi passado até agora e em tudo o que vimos pessoalmente na cena do crime, no caso da menina ISABELLA NARDONI, de cinco anos e tentar chegar a um consenso lógico, ou pelo menos, nos colocar no ângulo da visão bestial do criminoso e montar o quebra cabeças cujas pedras, no enorme tabuleiro, se acham totalmente desencontradas. De certo, temos que ela realmente foi morta no sábado, dia 29 de março, por volta de 23h e 39 minutos, após ser jogada do 6º andar, arremessada, de cabeça para baixo, ou mais precisamente do apto 62 do Condomínio do Edifício Residencial London, situado na Rua Santa Leocárdia nº. 138 na Vila Mazzei, zona norte de São Paulo.  

  

É fato notório que a queda ocorreu a partir da janela do quarto dos irmãos dela (Cauã, de 11 meses e Pietro, de 4 anos), por parte de pai, advindos da união dele com ANNA CAROLINA TROTA JATOBÁ. O apartamento do Condomínio do Edifício London é um prédio novo, recém entregue e de alto padrão. Cada unidade possui 88 metros quadrados, 3 quartos, sala ampla, cozinha e varanda.  A área de laser, logo à entrada, ostenta todas as comodidades para quem gosta de viver bem: churrasqueira, salão de jogos, salão de ginástica, sala de massagem, sauna, quadra poli esportiva playground e, nos fundos, um muro de 4 metros de altura, com cerca eletrificada. Moderno circuito interno de televisão, monitora todas as dependências 24 horas por dia. Isso leva a conclusão óbvia que ninguém entra ou sai, sem ser visto ou identificado, a não ser que existam interesses escusos por debaixo dos panos.  

 

Não é necessário dizermos que o apartamento 62, palco de toda essa brutalidade pertence a Alexandre Nardoni, cidadão formado em ciências jurídicas, porém, não exerce a profissão, vive às custas e  a sombra do pai que, por sinal, é também um profissional do ramo do direito. No mesmo andar, sua irmã Cristiane Nardoni é proprietária do apartamento nº. 63. 

 

 

 

De palpável, além de tudo o que já foi esmiuçado, nada nos sobra, nada nos resta, que possamos agarrar e chegar a uma conclusão positiva, clara, séria, que não deixe dúvidas pairando no ar. De certo, sabemos que uma princesinha, cinco anos, 21 quilos e 500 gramas,  antes de ser friamente lançada pela janela, foi barbaramente torturada. Em seguida, o assassino a asfixiou - ela que tinha toda uma vida pela frente não mais poderá reunir seus amiguinhos para festejar seu aniversario - que ocorreria dia 18 de abril. É quase certo que, diante das evidencias, e pelo rumo das investigações (apesar da seriedade com que vem sendo conduzido o caso pelo brilhante delegado de policia Doutor Calixto Calil Filho, do 9º Distrito Policial, na Rua dos Camarás, no Bairro do Carandiru, e da delegada assistente, Dra. Renata Pontes), mormente todo esse trabalho exaustivo, com depoimentos sendo colhidos dia e noite, alguns deles no mais completo sigilo, tudo leva a crer, dentro em pouco, engoliremos mais um crime atroz e bárbaro que, certamente deverá ficar impune, como os de João Hélio, Vinícius, Gabriela Cristina, e, agora, por último, da menina Madelene MC Cann e tantos mais que aconteceram por ai e não chegaram ao conhecimento da mídia. Bem sabemos daí para o esquecimento completo é questão de tempo. Basta um jogo de futebol, um final de semana prolongado... 

 

 

 

De certo temos ainda, a sociedade paralisada, estarrecida, de pernas e mãos atadas, voando nas asas de um mistério que teve inicio no 6º andar e cujo trajeto não foi além dos 20 metros (a distancia do 6º pavimento até o jardim onde Isabella terminou a sua trajetória) deixando em todos nós o apogeu de uma morte sem razão aparente, o troféu funesto e mesquinhamente sinistro de um acontecimento assemelhado ao de um longa metragem de péssimo gosto. De palpável, temos um pouquinho mais: a figura fria do criminoso, alguém que até agora não apareceu; um terceiro elemento, um suspeito de rosto não revelado, uma figura retórica, que se move oculta, que se mantém cercada por pesadas nuvens de fumaça e, neste exato momento deve estar em casa assistindo a tudo pela sua tela plana, e rindo, talvez, quem sabe, saboreando uma cervejinha gelada e curtindo um churrasquinho em companhia de amigos. Essa terceira pessoa, a nosso ver, NÃO EXISTE. Pode ser fruto da imaginação de certos indivíduos, entre aspas, que insistem em manter a farsa, que perseveram em continuar mentindo, enganando, intentando levar as evidencias para sendas onde tudo caia no esquecimento e acabe em pizzas. É sabido, por todos, que o Tenente Neves, comandante da operação que esteve no local, procedeu a uma varredura minuciosa em todos os apartamentos, nela incluída revistas em armários, guarda-roupas, áreas de serviços e clarabóias. Referida devassa se estendeu também às unidades não ocupadas, cujas chaves ficam na portaria aos cuidados de um porteiro. Restou evidente, nessa operação, que nenhuma porta, ou fechadura, veio a ser arrombada, como igualmente nenhuma pessoa alheia ao conhecimento dos moradores transitou pelo prédio.

 

 

 

Nessa confusão toda, de certo, para nos agarrarmos, sabemos que o casal Alexandre Carlos Nardoni, de 29 anos e Anna Carolina Trotta Peixoto, de 23, continua atrás das grades desde 5ª feira p.p., dia 03 de abril, prisão que ocorreu por volta das 16h40, após os dois se apresentarem “espontaneamente” a Justiça.  Ressaltamos que essa prisão se deu depois de um circo magistralmente bem armado, onde o ápice do espetáculo trazido ao respeitável público culminou com a notícia de que os advogados de ambos, encabeçado pelo Doutor Ricardo Martins fecharam um acordo com o juiz do 2º Tribunal do Júri de Santana, Doutor Mauricio Fossem e com o representante do Ministério Público, Doutor Francisco Cabraneli. Ora, se o senhor Alexandre não tem nenhuma culpa, nem tampouco sua esposa Anna Carolina, não havia necessidade de uma manada de advogados (isso mesmo, manada) promover um estardalhaço dos diabos e, em seguida, pactuar qualquer tipo de acordo, seja com o delegado, com o juiz ou com o promotor. Se os dois, realmente, não têm nada a esconder, nada devem, estão “limpos”, são, portanto, marionetes, bodes expiatórios, em todo esse triste e vergonhoso episódio, evidentemente um único representante do direito teria sido suficiente para desempenhar o papel de defensor. Paralelo a isso, se nada devem, nada temem, nada receiam, para que recorrer a “acordos”? Acordos, geralmente levam os cidadãos a pensar em, primeiro plano, em falcatruas. Acordos, num segundo patamar, induzem os manés da vida a imaginar que pai e madrasta morrem de medo, estão intranqüilos, se aquietam se borram, e temem represálias ou uma possível condenação futura. Até o presente momento, pelo que nos foi empurrado garganta abaixo, tudo leva a crer e as investigações não sinalizam ou não apontam caminho diferente: existe algo ungido de sujeira grossa; vemos um amontoado de lixo escondido por detrás das cortinas. Persiste na atmosfera, um ar rarefeito, com algo de muito grave se arrastando pelos bastidores, algo considerado fétido, que, até onde conseguimos alcançar, se amontoa imensamente monstruoso diante do nariz da sociedade. A sua constituição, como um todo, deve permanecer encoberto e trancado a sete chaves. Acordos, dimensionados por outra ótica, cheiram a dinheiro sujo, a mutretas, a modificações de conversinhas por debaixo dos tapetes. Acordos são brechas que certos causídicos (regiamente recompensados por polpudos honorários) deles se utilizam visando favorecimentos ilícitos, induções de má-fé e incorreções fantasiosas junto aos representantes do judiciário e, num plano mais complexo, descambam para uma somatória de opiniões contrárias, no sentido de denegrir a imagem já bastante agastada do judiciário, que inclusive, diríamos, anda as raias da total falta de credibilidade por parte da população. Acordos, num lanço espúrio, exalam o odor inexpugnável de jogadas ensaiadas, além de atonar planos bem traçados e estratégias buriladas por cabeças imaginativas, mentes que sabem exatamente como usar os códigos e as leis a seu favor, e, nesse bolo, delas se beneficiarem a bel prazer. O final dessa desordem a galera imagina, dispensa comentários: culpados e devedores, assassinos e salafrários acabam inocentados diante dos tribunais que lhes clamam a carcaça.  Devemos ter em conta que são literalmente através de acordos previamente temperados, que a impunidade toma vida e forma, aflora e avança, cresce se e expande a olhos vistos. 

 

 

 

De certo, temos mais de cem depoimentos tomados, dezenas de perícias feitas no local do crime, com possíveis retornos a ela. A polícia alega nesse juntar de peças, que 70% da cena do crime se conclui fechada, pronta, faltando apenas 30% para ser elucidado todo o mistério. Isso tudo é uma farsa. A policia mente, as testemunhas se contradizem, os familiares empurram "pra barriga", enfim, há todo um pandemônio construído para a trama, para o enredo terminar em nada. As  informações que a policia diz ter em mãos, parece manipuladas, espoliadas, lavadas, divorciadas,  portanto, de espelharem a verdade que o Brasil inteiro espera, a verdade sem rótulos, sem maquiagem, a verdade  nua e crua. Se o senhor Alexandre, voltamos a repetir, não teve nenhuma participação na morte da filha, de igual sorte, a madrasta Anna Carolina é politicamente inocente, se a queridinha irmã Cristiane não vomitou a frase “MEU IRMÃO FEZ UMA GRANDE BESTEIRA” ou teria sido uma “GRANDE MERDA”, não vemos necessidade de toda essa procrastinação, de toda essa enrolação, de todas essas jogadas ensaiadas de cenas marcadas, com câmeras, luzes, refletores, diretores, produtores e, igualmente, não valoramos motivos palpáveis para dar prosseguimento a essa palhaçada tecnicamente bem engendrada, onde, a cada minuto, a cada novo dia, surgem, no picadeiro entrançados e diferentes “disse-disse”, bem ainda, atores novos contracenando com velhas raposas, todos na esperança de subir, crescer e se firmar no papel que lhes foi atribuído pelos autores dessa comedia infame. A morte da pobre e indefesa Isabelle, na verdade virou mídia, deu o IBOPE que todos esperavam. Fez sucesso, se suplantou, engoliu as emissoras rivais com suas traminhas de água com açúcar. Os autores agora, querem fazer de todos nós, telespectadores e integrantes dessa turba de desesperados, um bando de apalermados e bufões. 

 

 

 

No contra fluxo, atentem para a programação vista a todo instante. É só ligar a tevê. Desde o início da novela, um forte esquema de segurança se posicionou em estado de alerta para conduzir, pelas ruas da cidade, em viaturas da PM e da Policia Civil, os dois possíveis acusados. O trânsito nas imediações do 9º Distrito Policial, do 77º DP e do 89º DP, paralisou horas a fio.  O fórum de Santana fechou. As ruas paralelas tiveram o acesso desviado. Formou-se um verdadeiro caos urbano. Um pandemônio de informações desencontradas surgiu em todos os programas levados ao ar, ao vivo, em rede nacional. A encenação foi tanta e tamanha, que pouco ou quase nada se falou do seqüestro de um membro da família do cartunista Maurício de Souza, o pai da Mônica e do Cebolinha e, antes dele, da menina Lucélia, mantida em cativeiro pela empresaria Sílvia Calabrezi. Sem mencionarmos o fato de que até o diretor geral do Departamento de Policia Judiciária, de São Paulo, o brilhante delegado Doutor Aldo Galiano, mostrou a cara, tomando a linha de frente, como bucha de canhão. Estamos batendo nessa tecla, porque segundo a própria imprensa (escrita, falada e televisada), em nenhum outro caso de tamanha ou igual envergadura tivemos o brilhante policial fronteiriço ao palco das investigações, ainda que para tentar passar um mínimo de credibilidade e respeito à população. Possivelmente ele pretende fazer nome às custas da pobre menina morta.      

 

 

 

Mas, afinal, nesse conjunto de pequenas doses que nos servem do remédio da inércia, gostaríamos de colocar as seguintes indagações: qual das crianças teria gritado, “pára pai, pára pai?” Pietro de 4 anos ao ver o pai batendo na irmãzinha, ou a própria vítima, a Isabella ao ser espancada? Quem subiu com a menina, o pai, a madrasta, um terceiro elemento? Quem permaneceu no carro? E por quê? Por que a família tão querida e unida não subiu com todos seus integrantes? Onde está a fita com a gravação das imagens mostrando o instante exato da chegada do Ford K de propriedade de Alexandre no interior da garagem, e a movimentação das pessoas que o ocupavam, até o minuto fatídico que culminou com a morte da Isabella? O porteiro de plantão não presenciou essa chegada?  Nada viu de anormal? Até quando, meu Deus, até quando vão nos fazer de babacas e bobos da corte? Até que ponto pretendem tapar o sol com a peneira e continuar a atirar excrementos em todo nós? Por que o senhor Alexandre  não ligou para o socorro, para o bombeiro, ou para o resgate? Por que, antes de qualquer outra atitude normal de um ser humano perfeitamente situado no tempo e no espaço fez uso do telefone para se comunicar, primeiramente com o pai, o sogro e a irmã?  Falta agora o Tribunal de Justiça dar o veredicto final, ou a porrada faltosa: COLOCAR O LINDO CASAL DE POMBINHOS NA  RUA E OS DEFENSORES DE AMBOS PEDIREM PROTEÇÃO POLICIAL PARA QUE NADA DE RUIM OU DE  MAL ACONTEÇA A ELES. SÓ NOS FALTA, MEUS AMIGOS, A CIVIL OU A MILITAR VIRAREM BABÁS. Não devemos esquecer, em nenhum momento que isto aqui é Brasil, um país de corruptos e baderneiros que se vendem por uma cesta básica. Um apelo veemente pretendemos deixar registrado. Por favor, senhores, não nos subestimem. Não faça de nós, meras bestas e patetas. Melhor colocando a oração: não só a nós, prezados amigos, advogados, familiares dos envolvidos, mas igualmente, os milhares e milhares de pais, mães, avós, os trocentos cidadãos de brio e vergonha espalhados em cada canto deste mundão sem porteiras; enfim, a sociedade como um todo. Mostrem logo a verdade. Para que continuar alimentando essa palhaçada? Essa babaquice está fazendo mais sucesso que “Duas Caras”, da Rede Globo.  Não acham os ilustres envolvidos no caso da menina Isabella (e aqui abrimos um parêntese) para nos dirigirmos diretamente aos assassinos... Não seria de bom alvitre, uma vez que estamos todos contaminados pela síndrome da cara de pau envernizada, todos nós, participarmos de um torneiro de ferraduras?!...

 

 

 

Por todo o exposto, e no meio desta sacanagem, a pergunta que não quer calar: quem, afinal, matou a menina ISABELLA NARDONI?

 

 

 

Simples: se no local do crime só estava o casal Alexandre e Anna Carolina - e não foi nenhum dos dois que jogou a menina pela janela - só nos resta vestir a carapuça de bobos e apalermados e engolirmos toda essa balela misturada com um bom prato de arroz com feijão e um copo de refri bem gelado. Terminando, meus caros, meus amados, a terceira pessoa que o casal alega ter estado no apartamento (e por essa razão ninguém viu, claro, nem poderia...) essa terceira pessoa, não é outra senão o Espírito Santo. Só um espírito assim, daninho, consegue dar umas escapadelas lá do céu, ou dos quintos, vir a terra, fazer uma merda dessas e, depois, dar uma banana bem grande para todo mundo e sair da mesma forma que entrou. Voando! Foi isso: o Espírito Santo entrou no apartamento, jogou a menina pela janela, pretendia dar uma trepadinha com a Anna, mas o Alexandre estava puto da vida e ele, o Espírito Santo, achou melhor cair fora. Por esta razão, Senhores Representantes desta nossa justiça de bosta, senhores juízes, promotores, acusadores e outros ores. ACABEM COM ESSA FARSA. CHEGA DE ESPETÁCULOS CIRCENSES. O POVO NÃO AGUENTA MAIS. PONHAM OS NARDONES NA RUA, OS ADVOGADOS DELES JA COMERAM MUITA GRANA. RASGUEM OS PROCESSOS, OU, POR ECONOMIA, DISTRIBUAM OS VOLUMES A UMA INSTITUIÇÃO DE CARIDADE OU, POR DERRADEIRO, USEM COMO PAPEL SANITÁRIO EM CASA PARA LIMPAREM A BUNDA.  PRENDAM, SEM MAIS DELONGAS, PELO AMOR DE DEUS, O ESPÍRITO SANTO. ELE É UM MANÍACO, UM TARADO, UM PEDÓFILO E PODE PINTAR EM OUTRO APARTAMENTO E “APRONTAR DE NOVO” MATANDO OUTRA CRIANÇA INOCENTE. VISTO POR OUTRA ÓTICA: PENSEM NA MÃE DE VOCÊS... QUALQUER UMA DELAS PODE VIR A SER A PRÓXIMA VITIMA!
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos, é jornalista. Este texto foi publicado originariamente em 11.04.2008 e anexado aos autos do inquérito quando da fase policial em 12.04.2008.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Aparecido Raimundo de Souza e seus textos cheios de picardia



o pensamento de Aurea Pazanini
Interessante, como certas pessoas entram em nossas vidas, nos cativam e nos deixam cheias da sua felicidade. É o que aconteceu com um tal de Aparecido Raimundo de Souza, escritor, que de longo tempo venho acompanhando seus textos, um aqui outro ali, outro acolá. Ele tem uma espécie de magia interior que nos contagia, que nos tira as tristezas e nos afasta das infelicidades. Aparecido ri das pequenas coisas, aliás, ele não só ri, ele vai junto com a risada e nos envolve de tal forma que ficamos carentes de sua presença, carentes de seus textos, carentes de coisas novas para continuarmos a nos delicair com suas tiradas, com as suas picardias irreverentes. Foi isso o que aconteceu comigo, repito. ele entrou na minha vida e me fez feliz. Me fez mais alegre. E acredito que fará com você tambem. Seu texto mais recente, "Como abrir caminhos e vencer demandas", é a prova fiel do que acabo de dizer. Aparecido, de um simples panfleto pêgo na rua, fez uma historinha linda, trabalhou bem as palavras e me encantou. E, com certeza, vai encantar voce tambem. Parabéns a todos os blogueiros que nos brindam com seus textos maravilhosos. Parabéns Aparecido Raimundo de Souza, por existir. Quero saber mais de você, quero mais textos. Tenho, na verdade, sede das tuas alegrias.
Sua fã incondicional
Aurea
Fortaleza Ceará

terça-feira, 9 de outubro de 2007

QUEM SE ABILITA?

Aparecido Raimundo de Souza
mesmo autor de Com os chifres à flor da cabeça e
As mentiras que as mulheres gostam de ouvir














QUEM SE ABILITA?


2007




Aparecido Raimundo de Souza














Prefácio

Um cronista irreverente

(*) José Augusto de Carvalho.

A origem da crônica se perde na noite dos tempos. Acredita-se, no entanto, que, inicialmente, nos primórdios da era cristã, a crônica era apenas uma lista de fatos em seqüência cronológica. Daí o nome crônica, do grego Krónos, que significa “tempo”.
Até o século XIV, a crônica era escrita em latim, e narrava os fatos ocorridos durante cada reinado. A partir de Fernão Lopes, a crônica dos reis passou a ser escrita em linguagem portuguesa. Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara foram os dois melhores cultores desse gênero mais historiográfico que literário.
Foi a partir do final do século XVIII, com o abade francês Julien-Louis Geoffroy, que a crônica deixou de ser história para ser um gênero literário. Geoffroy (1743-1814) começou a escrever crônicas literárias, tais como hoje as entendemos, em 1800 no Journal des Débats, onde já escrevia folhetins (“feuilletons”) de que foi, aliás, o inventor. Inicialmente, o folhetim era um artigo de crítica dramática publicado em rodapé de jornal. A partir de 1840 é que os romances começam a ser publicados em capítulos nos periódicos.
Em 1836, a crônica literária, por influência de Geoffroy, começou a ser cultivada no Brasil. Seus primeiros e principais cultores foram José de Alencar (que também publicou romance em folhetins), Joaquim Manuel de Macedo, Machado de Assis, Artur Azevedo, Olavo Bilac. Os grandes mestres da crônica moderna são Rubem Braga, Álvaro Moreyra, Carlos Drummond de Andrade, Humberto de Campos, Carlos Heitor Cony, Lourenço Diaféria, Luiz Fernando Veríssimo e Fernando Sabino, entre outros.
Ser cronista, hoje em dia é, no mínimo, uma temeridade. A menos que o cronista tenha autoconfiança e acredite no próprio estro.
Penso ser este o caso de Aparecido Raimundo de Souza que, em crônicas atrevidas a que não faltam sarcasmo e ousadia, acaba divertindo o leitor com suas reflexões a respeito do seu cotidiano e do mundo que o cerca. Quando não são os personagens da vida artística, política e cultural – brasileira ou não – que, às vezes, aparecem com nomes trocados, mas facilmente identificáveis, como Paulo Caolho, Monteiro Dogato ou Zélia Lavvai, há os seus próprios personagens de nomes exóticos, como Fosfolônio, Juarez da Birosca ou Pedro Propionato de Clobetasol, nomes inventados com algum toque talvez de ironia, mas certamente com muito senso de humor.
E humor e ironia é que não faltam neste pequeno grande livro que foge – e muito – aos estereótipos da crônica a que estamos habituados. Quem não se divertirá com “As relíquias que não envelhecem”? Ou com trocadilhos como “Gula e Come Zero”?
Aqui o leitor também encontrará o non-sense em várias crônicas, como plantar semente de urubu, por exemplo.
Quase todas as crônicas deste livro são narrativas que não se distinguem de contos curtos: têm trama, têm personagens, têm ação. Não são apenas reflexões de um deslumbrado diante de fatos do cotidiano.
O cantor francês George Brassens (1921-1981) ficou famoso nas décadas de 60 e 70, sobretudo, não por ser “pornográfico do fonógrafo”, como ele próprio diz numa de suas canções, mas por conseguir associar o erudito ao popular, numa linguagem ora desleixada, ora culta, numa mistura agradável e inusitada de registros lingüísticos, do mais formal ao familiar. Sem querer comparar, mas já comparando, acredito que Aparecido é, na crônica, um pouco do que Brassens foi no poema musicado: basta ler, para constatar o que digo, a crônica autobiográfica “Eu, por mim”, ou “O povo com a boca no trombone”, em que a irreverência é a nota fundamental.
Que o leitor, ao lê-lo, vibre com as tiradas desse “bon vivant” que sabe descobrir na vida o que a vida de melhor lhe oferece

(*) José Augusto de Carvalho é Mestre em Lingüística pela Unicamp,
Doutor em Letras pela USP,
Escritor e tradutor da Editora Record, com mais de uma centena de livros publicados.


Coisas da modernidade


O Júlio César ganhou um celular de última geração. Passa fax, navega na Internet, manda torpedos, armazena 1.500 números de telefone, busca rápido qualquer coisa no menu principal, funciona como despertador, toca um monte de musiquinhas diferentes, possui mapa com guia completo de localização instantânea de ruas e logradouros, além de oferecer a previsão do tempo, horóscopo, mapa astral e a cotação do dólar, em viva voz. Tem 200 jogos, TV a cabo e bina. O Júlio, com toda essa tecnologia nas mãos, só deparou com um probleminha na hora de usar: a maravilha não funciona nem por reza braba.
Já o do Roberto vem com dispositivo de segurança que chama a atenção do dono se, por acaso, este o esquecer em algum lugar. Possui antena parabólica e 299 toques diferentes de campainha. Fala fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, russo, japonês, árabe e até javanês. Escreve textos e cartas de amor, conta piadas, chora em velórios, ri em festinhas de crianças, goza quando vê moça de baby-doll, toca violão, bateria e mais outros 50 instrumentos. Único inconveniente apontado até agora pelo Roberto: a coisa, apesar de todo o requinte, não completa as ligações, deixa a criatura no meio de um bate-papo falando sozinha e o camarada no outro extremo da linha, com cara de tacho.
O do Augusto oferece os mesmos serviços que o do Júlio e o do Roberto juntos, e mais: imprime lista dos principais restaurantes, acumula 100 tipos de pratos diferentes e aponta as melhores bebidas, como vinhos e champanhes importados. Escolhe as roupas que seu senhor deve usar e reza missa com padre Marcelo em latim. Traduz livros estrangeiros, abre uma tela com fundo azul mostrando uma imensidade de casas de shows e, de roldão, as melhores badalações da noite. Vem com carteira de motorista, brevê de piloto de avião, tira e envia fotografias instantaneamente, possui blindagem total de proteção para o teclado e o display caso tome uma pancada ou caia no chão.
Defeito principal detectado pelo Augusto: forte interferência quando se está tentando entabular uma conversação séria. O barulho (tipo chiadeira) chega a ser tão enervante que o infeliz acaba desligando e deixando de lado o assunto, ou procurando o primeiro orelhão, já que jogar para cima não resolve o problema, porque o aparelho é a prova de tombos. E pior: caso o sujeito perca a paciência e resolva arremessá-lo do alto de um prédio, por exemplo, um pequeno pára-quedas cor de rosa se abre automaticamente num compartimento junto à bateria, amortecendo a queda.
Essas coisas da modernidade são assim mesmo. O modelo que adquiri recentemente, para minha filha Dorinha, surpreende, a começar pelo preço. É tão pequeno que precisa de lupa para enxergar o tamanho das parcelas. Tem uma evolução acima de qualquer suspeita. É protegido contra assaltos e seqüestro-relâmpago. Se, por acaso, for furtado ou roubado, volta sozinho para casa. A dinâmica é tanta que seleciona e sugere tipos de namorados, mostra saldos de contas correntes e de cadernetas de poupança, efetua pagamentos de água, luz e telefone, faz caretas para engraçadinhos, oferece pacotes de minutos e embrulho de segundos, caixa postal, siga-me, tecla sap, chamada de espera, despista chatos e inoportunos, late como um cão raivoso, sai correndo atrás quando cruza com gatos, e sobe em banquinhos ao enxergar baratas.
Armazena mil tipos diferentes de informações, avisa se está com fome e se despluga quando quer ir ao banheiro. Não toca em lugares proibidos, como velórios, missas de sétimo dia, salas de audiências, casas de massagem, hospitais, reuniões sociais e vôos domésticos. Obstrui automaticamente todas as funções, por um período de três horas, caso o dono insista em atender a uma chamada no momento em que estiver no trânsito, dirigindo ou na cama, fazendo amor.
Altamente assimilativo, ao receptar uma ligação com notícia ruim, evita que seu proprietário tenha um ataque de nervos, dá conselhos, joga futebol, torce pela Seleção, recita versículos da Bíblia, está equipado para download de aplicativos, tem display colorido, rádio AM e FM, fone de ouvido e capacidade de envio de imagens e vídeo com alta resolução. Declama Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, odeia os programas do Gugu, do Faustão, da Hebe, da Luciana Gimenez, da Adriane Galisteu, do João Cléber e do Amauri Júnior. O programa Falando Francamente, da Sônia Abraão, ele tira do ar e substitui por desenhos do Pica-pau e do Tom & Jerry. Assume postura retrógrada e entra em parafuso, ato contínuo, se alguém o deixar perto de uma televisão ligada no Ratinho.
Dorinha, diante de todo esse progresso da engenharia superavançada, descobriu uma nova fórmula de usar o celular. Uma modalidade, inclusive, não veiculada pelos fabricantes em seus anúncios, nem comentada pelos vendedores das lojas onde podem ser adquiridos. Basta se afastar um quilômetro para fora da cidade, principalmente depois das 20 horas, que do painel aceso desliza um trocinho muito vivo e pulsante. É como se fosse um consolo duro, mas ao mesmo tempo, macio e quente, que ao ser usado faz aflorar, do mais profundo da garganta, uma série de gritinhos de dor misturados a um êxtase de satisfação de ver tudo entrando, rasgando, centímetro por centímetro, as entranhas, contraindo os grandes lábios e fazendo, em parceria com o clitóris e o resto do corpo, o coração acelerar, descompassado, dentro do peito, como se quisesse sair estabanado por todos os poros da epiderme, graças, talvez, à sua flexibilidade, que dizem ser de 180 graus. Em linhas gerais, o celular é completo. Tão completo que não falta nada, nem quando se trata em substituir o homem. Dá uma mãozinha, ou melhor, uma mãozona na hora de trepar, interagindo com o ato sexual em si, e o que é melhor, colocando para fora uma linguagem até então desconhecida no mundo: a do AVC ou seja, Amor Virtual Carnal.
Em face desta experiência ímpar, vivida e sentida no útero, Dorinha concluiu que esse tipo de celular é excelente para adolescentes que nunca tiveram a primeira vez com seus namorados. Observa, ainda, que qualquer menina, com um desses ao alcance das mãos, não corre nenhum risco de engravidar pela boca, contrair doenças sexualmente transmissíveis, tampouco de se usar preservativos. Basta o parceiro, na hora do “vamos ver”, não entrar numa de ficar afobado. Segundo ela, nesses momentos, o rapaz deve procurar introduzir o aparelho no orifício que lhe for indicado e fazê-lo com carinho e destreza, devagar, pausada e compassadamente, observando, sempre, que as pernas da guria permaneçam bem abertas e a sua visão do triângulo e da racha -, ou melhor, da racha no centro do triângulo, ou do olho do cu, se for o caso -, não desapareça. O único temor de Dorinha, com relação a quem vai usar um desses aparelhos é a ansiedade e o nervosismo do sujeito querer enfiar rápido demais ou tudo de vez, e, nesse afã natural que atropela a idade, o parceiro ou a parceira gozarem, e, ao fazê-lo, perderem o controle da situação e o brinquedinho sumir, de vez, lá por dentro sem que depois se consiga trazê-lo de volta, a não ser com a ajuda de um médico especialista em aparelhos atochados em orifícios pouco ortodoxos, o que criaria, para o casal, uma situação bastante delicada e vexatória, além de vergonhosa e humilhante.
O celular de Dorinha é, portanto, idêntico ao que presenteei à Suzana, minha namorada, no dia do seu aniversário. Talvez seja um pouco mais requintado que o de Júlio César, ou mais aprimorado tecnologicamente que o de Roberto e o de Augusto. Refinadíssimo, passa filmes, faz travessuras, anda a cavalo, gosta de Zeca Pagodinho, limpa a casa, cozinha, chama o elevador e sabe mexer com os controles da tela plana de 43 polegadas e do DVD sem precisar ler os manuais, além de vir equipado com GPRS, sons polifônicos e ainda dispor de uma tal de teleconferência para cegos, pernetas e esposas de ministros pré menstruadas.
Possui defeitos? Sim! Fica a maior parte do tempo mudo ou fora da área de cobertura, mesmo que você o cubra com alguma coisa bem picante, como pirão de Lula ao molho de Marcos Valério. Não dá palpites para os números da Mega Sena nem prevê se algum avião vai sair da sua rota e bater na Câmara ou no Senado em Brasília, matando uma porrada de deputados e senadores inocentes antes de chegar ao seu destino, ou onde Bin Laden e a sua turma da Al Qaeda vão atacar da próxima vez. Mas isso não importa muito. Suzana não anda de avião nem joga na loteria. Nem é inimiga dos ratos de colarinho branco, nem quer ver Osama comendo capim pela raiz. Estou feliz pela minha filha e agora também mais contente pela namorada. Ela gostou, melhor dizendo, amou o presente, principalmente depois que teve um papo de pé de ouvido com a Dorinha e o namorado dela.
Por conta dessa conversa, todo dia uma cena se repete dentro da BMW, seja no escurinho do estacionamento do apartamento onde ela mora com os pais, seja na garagem de casa. Fechamos tudo e passamos para o banco de trás. Ficamos nos beijos e nos amassos até que os vidros embacem totalmente. É a partir daí que o bicho pega. Como uma desmiolada bem puta e vagabunda, Suzana suspende o vestido e pula no meu colo. Abre bem as pernas e senta, ou melhor, aterrisa, de costas e pede que introduza o aparelho em seu rabo, até o ânus. A criatura, nessa hora, parece que entra em transe como se beijasse a língua do Paulo Maluf. Começa, então, a gritar “PT, PT”, (cuja tradução seria Põe Tudo) e a rebolar o traseiro como qualquer vagabunda que tivesse a chance de passar uma noite de orgia fodendo num dos ricos quartos do Palácio da Alvorada e a gemer feito uma louca desvairada, ao som ambiente de um cd com a Ave Maria de Haendel. Por precaução, costumo tirar a calcinha, quero dizer, a capinha do celular, e, junto, de roldão, desligar a tecla da bateria: evita surpresas, como a de alguém ligar no meio da brincadeira e, na hora de atender, se descobrir que foi apenas um palhaço idiota que discou, sem querer, para o número errado.



O golpe da barriga.

Tudo começou com a chegada da Eva no paraíso. Naquele tempo, não existia o golpe da barriga. Por isso, a primeira mulher, nove meses depois, aplicou, em Adão, a velha jogada da serpente. Deu o bote. Conclusão: a maçã, que não tinha nada com o peixe, levou a pior. Ficou grávida do pecado original. Existem pessoas que discordam do nosso pensamento. Sustentam que a história dos golpes teve seu real início com Paulo Caolho que, vítima de um demônio da Srta. Prymprim, pulou de banda e, nesse salto, como se estivesse possuído pelo espírito aventureiro de um guerreiro da cruz, metido a garanhão, comeu Frida e as Malkírias em tempo recorde: 11 minutos! Por essa razão, Verharmonika, apaixonada, deu uma trepada inesquecível com o Malquinista, que antes havia tomado um banho nu em pêlo sentado na margem do Rio Piedra, feito careta e mostrado a língua para um tal de Zahir que resolvera vir cagar ao seu lado e, justo, limpar a bunda com o Semanário de um Magro, que estava acabando de ler. O Malquimista provou também do néctar escorrido do cuzinho da Bruxa de Pintofino e esta, pê da vida, resolvera denunciá-lo por estupro. Enquanto isso, Verharmonika, inconformada, resolveu ir mais longe na sua loucura e anunciar que estava grávida de Paulo. Como Paulo andava de olho na Chisbina Oitoencica, com quem se casou algum tempo depois, Verharmonika decidiu morrer se suicidando nas cercanias do Monte Trinta e Cinco.
Monteiro Dogato, criador do Sítio do Pega-Mal-Sem-Chinelo, também não escapou das línguas ferinas do seu tempo. Correm boatos até hoje de que a Narizdovizinho tentou passar a perna em Dogato. Ou melhor, o que tinha entre as pernas. Mas ele, esperto, saiu pela tangente, temendo a fúria de Dona Agüenta que, às escondidas, chupava o pau do Burro Falante. Furiosa, Nariz deitou só de calcinha na cama do Marquês de Rabicocó. Um fiasco! O Marquês era bicha, não gostava de comer bocetinha e, pior, dava o caneco para o Pedrinho e também para o Saci. Foi efetivamente com o Príncipe Escamado que a dócil e meiga Narizdovizinho perdeu a virgindade e não como divulgado pela imprensa da época, quando os jornais noticiaram, com enormes estardalhaços, que o pai da criança era o Visconde de Saibugosa.
Há, em contrapartida, outros casos famosos. Frad Fritt caiu como um patinho na conversa mole de Pennifer Amistosa. Stiquem Spilaiceberg dançou bonito ao passar à frente a Lista de Elevadores Schindler. Dizem que ficou de quatro por uma fêmea bisonha de dinossauro. Mas levou o golpe da barriga do ET, que engravidou seus bolsos.
Ciciane Caramujo, modelo e atriz, quis dar a canelada certeira na barriga no cantor Velo. Contudo, safo e desembaraçado, o rapaz empurrou a namoradinha para escanteio, pintou o cabelo de loiro, gravou um CD maneiro e preferiu enrolar a vida com o Valdir Ferratrês, o MalVado. Permaneceu de molho, por causa dessa burrice, numa cela imunda da Polícia Civil no Rio de Janeiro, por 34 dias. E, pior, pode voltar, a qualquer momento, a não ser que seus advogados decifrem o Código Da Vinci para o promotor de justiça e comprem um apartamento de cobertura, na Vieira Souto, para o juiz que julga o caso.
Roseana Semlei, não tendo como dar o golpe da barriga, no marido -, pois fizera uma ligadura, às escondidas, com um ginecologista, amigo seu, dos tempos da faculdade -, resolveu traí-lo com o motorista da família. Jorge Mulad, descobriu tudo e ficou furioso. Para não ficar por baixo e ser chamado de chifrudo, resolveu pagar na mesma moeda e dar o troco à esposa. Antes que ela atinasse com o que estava acontecendo, chutou, ou melhor, chuchou a gorduchinha da filha mais nova do caseiro. Nessa estocada, fez um belo gol e ela, a filha do caseiro, concebeu, antes de nove meses, um lindo pimpolho, ao qual deram o bonito nome de Lemos Agripina. Por causa dessa prenhez indesejada, Roseana teve que abandonar, às pressas, a candidatura à Presidência.
O impetuoso Robinson R-44 não deu, mas recebeu o golpe na barriga do comandante Estopim Saicaro, da PAM. Furioso por ter sido traído por seu helicóptero de confiança com a secretária Patrícia Semsantos Silva, Estopim derrubou os dois, numa manobra esquisita, perto de sua fazenda em Pedro Juan Caballero, indo, só de raiva, junto, e, de contrapeso, assumindo, no final, as burrices pelo impensado gesto.
Em linha paralela, o valoroso (ou seria rendoso?) golpe da barriga vem expandindo a todo vapor, devido à cobertura diária da mídia, de Norte a Sul do País. Cafufu (como toda a Seleção) beijou tanto a boca da Traça do Entra que andaram dizendo, logo que voltaram para casa, que a estatueta pegou um sapinho brabo, ainda no avião. E, por conta, o presidente da Fififafá precisou arranjar um SPA de última hora para que ela descansasse, escondida, longe dos olhos sujos da imprensa. Todavia, um repórter abelhudo da revista Mixto É Quente foi mais longe e confirmou ter visto o resultado de um exame Beta HCG recente: a Traça realmente está em estado interessante. Com certeza, será difícil, para o Brasil, na próxima, segurar hexa.
Broque, ajudante de palco de Sírviu Tantos, não é de hoje, vem tentando dar o golpe do baú, na barriga do homem do paú. Está difícil, mas ele não desiste. Todavia, Rombardi, que só quer SBT (e não SBP, que serve para matar insetos), promete, de cabeça erguida: ano que vem o tiro de misericórdia dos dois, não sairá pela culatra, mas sim, pela “culetra”. Isso quer dizer o seguinte: o rebento de Sírviu e Broque, com certeza, nascerá e mostrará a cara na Casa dos Eletricistas, edição 24.
Jorge Gozado, antes de conhecer a Vélia Lavvai, teve um casinho passageiro com a Gabristela. Correram boatos, logo que descobriram o romance, que o escritor baiano só comprava cravos para dar de presente à moça e, quando se encontrava com ela, num quartinho alugado perto do Pelourinho, punha em prática uma tara antiga: beijava sem parar a canela da jovem. Entretanto, foi pelo Sumiço da Anta que ferrou o lombo de verde amarelo: o pessoal do Ibama ficou um tempão no seu encalço, querendo saber onde o autor de Mar Torto e Avelino Grapiuna havia escondido o tal bicho, já que a Anta, lá por aquelas paragens, era e ainda é considerado, até hoje, um animal em extinção.
Antonieta do Agreste também botou as manguinhas de fora e deu o golpe, tudo por causa do ciúme que sentia de Gabristela. E Gozado se viu, de repente, às apalpadelas, sem saber se comia a Vélia, se jantava a Gabristela ou se palitava os dentes com a Antonieta. Acuado e sem saída, fugiu, às carreiras, de braços dados com Dona Cor, (sem seus dois feridos) para as bandas das Terras do Sem Mim, lá para os lados de São Borge dos Escarcéus. E dizem, ainda, que se escondeu por uns bons cinco dias em casa de Quincas Burro D’Égua.
A coisa é bem complicada e não pára por aqui. Adriane Galiosteu deu o golpe fatal no “Cantinho das Roletas” e fisgou o Penna, embora o piloto só andasse voando e de braços dados com a Bruxa. Para se livrar das duas chatas, Penna se mandou do Brasil e foi parar em San Marino, em Ímola, onde de repente decidiu encarar o outro mundo dando um beijo de adeus meio esquisito na curva do Tamburello, matando a si próprio e a seu carro, que não tinha nada a ver com a situação. Sirene Domingues aplicou no Ronaldentinho e garantiu, com um robusto moleque, a pensão pelo resto da vida. A Edna Novo escolheu o Rosário e deu à luz a Raphapel. Por um bom tempo, (ou pelo menos até o guri completar a maioridade) o craque vascaíno se verá às voltas, engasgado com um monte de bolas queimando goela abaixo.
É claro que nem todas as pessoas seguem por esta estrada. Vudu Perdeopato, por exemplo, não caiu na esparrela. Ao contrário, equilibrou o golpe antes, principalmente depois que recebeu uma carta de Nossa Senhora de Marchaarré, carta essa levada em seu programa dominical pelo vidente Eurípedes Totonho Flamenguista Minto. Por assim, comprou a médica Pose di Metteo e, meteu nela uma barrigada chamada Pão Aususto. Na verdade, Vudu só queria competir com a Bruxa, que ultimamente vem falando muito abertamente com duendes e, por ter esse canal aberto com esses seres “extras”, providenciou a vinda de Cascha ao planeta.
Parla Ferez e Manel Abichaonde Quidoidera da Silva, ou simplesmente o Xanty, vocalista da bunda Desarmonia do Sombra, e Alicéa e Confelso Nãopitta são também modelos importantíssimos. A primeira, porque deu o golpe da dançarina e o Brasil inteiro (na falta de coisa melhor) se apaixonou pelas lindas ancas do Tcham, enquanto Manel pulava em cima do seu motorista particular só de calcinha de renda e chupeta na boca balbuciando mama, mama, quero mama; a segunda, descontente com as falcatruas do marido, meteu um ferro em brasa em sua barriga. Confelso, pego de surpresa, e não tendo como escapar, acabou engravidando o Banestado com o desvio de dinheiro para as propinas pagas às empreiteiras das obras da Avenida Águas Espraiadas e do Túnel Aylton Senna, sem mencionar a empresa Offshore Yukon, que passou a lavar e a secar dinheiro. Com isso, Alicéa, que queria uma pensãozinha de Confelso e outra do senador Enterro País de Burros, então presidente da CPI, tomou no pescoço, além de ter caído no esquecimento e, pior de tudo, ficado a ver navios, sem o pito de Pita para pitar nos finais de semana. Não devem ser esquecidos, igualmente, Gonorréia e o Carlos Aberto da Semgraça é Nossa (onde, por acaso, só ele ri) e do Júrnio, que está grávido, de oito meses, da Sandidy, embora Chupãozinho e Xauprecó não acreditem nessa historia. Enfim, esses casos todos citados reforçam, de maneira insofismável, a teoria da boa “lapada”, grosso modo, golpe da barriga, se for bem estudado e igualmente aplicado na hora certa, poderá propiciar muitos e muitos anos de felicidade, sem se precisar fazer um esforço muito grande.
Evidentemente, poderíamos elencar um número infindável de situações semelhantes. Só para refrescar a memória, estão lembrados do astro do rock Quick Fagger? Nem ele, com aquela cara de drogado, escapou. A Prussiana Gemeumenos, foi mais esperta e trouxe ao mundo o Malucas, observando que a dondoquinha “namorou” apenas uma noite com o popstar. O refúgio dos deuses na sofisticada Ilha de Meestique, no Cabide, com oito quartos, piscina, banheira de ofurô e praia particular, avaliada em l0 milhões de dólares, não interessaram à donzela. A “belle de jour” só se envolveu com o trouxa para dar o golpe da barriga. Hoje, a espertalhona trabalha numa estação de televisão fazendo um programa medíocre para imbecis de fino trato. Como os malditos horários políticos gratuitos (gratuitos uma merda) nós merecemos ver esse monte de lixo na nossa telinha!
Seguindo adiante, querem um amor mais bonito que o da socialite Fatrícia de Saibrit com o cantor Cábio Juntor? Foram l35 dias de idílio. E, antes, ele já havia “ficado” com a Temreza de Paiva Canudinho, com a Glória Atires, com a Quistina Karthalida e Guindastina Guinle. Nenhuma delas, diga-se de passagem, conseguiu se enquadrar na sua Alma gêmea. E de Palvão Sereno e Deunopé Soares? Pois é! Não nos esqueçamos, pelo amor de Deus, do Armênio Craca e o Brinco Central, e, principalmente, do juiz Quilalau dos Santos Comequieto e o golpe de mestre, no fórum do Tribunal Descansalhista inacabado.
Tem o cara da Deus é Pavor, o pastor e comedor de irmãs, (ou melhor, ovelhas) Davi Sembanda; da Ruaberta Cavaloeri e o jogador Athirson Maozzolli; do Brasil com o FMI; da Cheiana Quadro e o lutador Irrito Holofote; da Tiaminha com o chicotinho; do bispo Fudir Maicedo e a Igreja Universal do Reino dos Meus, do João Paulo Nãoquis e a modelo Wernanda Wolks; de Paul Ameixas e o Trem das Sete; da Elaeana e Roberto Apertado; de Gérson Sirene e Valise Tattu; do Gamestavo Kucurto (o Gugu-gagá) com o tênis; do Juiz Inácio Cavalo da Silva e o PT; da Grana Saula e o vôlei; de Pelelé e Asília.
Não podemos falar nada, absolutamente nada, da Canivete Bruno e Pulo Boulart. Igualmente, da Cláudia Esqueceu e do diretor Souzé Henrosque Fonteseca; da Elaine Miquealy e Reza Bigorrilho; ou da Maria Afrita e Roeuaberto Carlos. Só para servir de ilustração, o romance desses dois foi tão bonito que deu até música, gravada, “a depois,” pelo rei. Também nada podemos dizer de Zemané di Estaamargo e Zebu, Rosnar Santos e Rosaamarraria, Caçarolinha e Estaria na Paz, Fulio Stufanimim e Quemdera, Bom Casalcanti e Pautrícia, Vilião Bonde e Bátima Bernardines, Podre Querverdo e seus enigmas indecifráveis, Búlia Lemenostz e Aleixandre Gorges, Antoine de Saint-Éxupéry e o Pequeno Príncipe, Auaurélio e seus dicionários, entre outros. Como não podemos fofocar em cima desses, calemos a boca de uma vez por todas. Terminando, ontem conseguimos descobrir o e-mail de Jesus Cristo, o Salvador, através de Mel Gibson, que está filmando sua nova paixão e logo estaremos vendo o filho de Maria e de José sofrendo horrores enquanto comemos pipocas e damos uns amassos na namorada. E como todas as igrejas vivem anunciando a sua volta triunfal, com bandas de músicas e fogos de artifício, resolvemos lhe mandar uma mensagem. Dizia o seguinte:
“Amado Jesus, por aqui todas as denominações apregoam seu regresso. Em cima desse possível retorno, vendem sua imagem a preço de ouro, falam de suas graças, de seus milagres e de seus infindáveis poderes. Em seu nome, tem nego ficando rico, pastores comprando emissoras de rádio, redes de televisão, mansões à beira mar, jatinhos particulares, helicópteros, bispos carregando dízimos disfarçados em meio a um montão de cuecas, com passaportes para a Disney, abrindo contas em paraísos fiscais, o diabo. Se realmente, pretende voltar, ó Glorioso Jesus, cuidado com o golpe da barriga. O Senhor correrá o risco de ser massacrado e torturado novamente, só que, desta, em horário nobre, numa emissora de TV, para garantir o ibope de certos apresentadores”.
“O golpe que vão lhe aplicar não é outro senão o da barriga, (todavia, na hora eles arranjam um nome bem comercial para engambelar os telespectadores) evidentemente, para tentar descobrir se, realmente, o Senhor é Filho de quem se diz ser. Vai ser difícil colher o material, ou seja, o sangue, até porque a Virgem Maria, sua mãe, ninguém sabe por onde anda. Seu amado pai, o Grande Arquiteto, conhecido por vários nomes, entre eles Deus, também nunca foi visto nem mais gordo nem mais magro. Diante disso, como é que vão fazer o exame de DNA? Se o Senhor for no “Dobobão do Faisão”, aquele idiota da Tlobo, com cara de mongolóide passado a ferro a vapor, tudo bem. Ele não vai deixar o Senhor falar, e, com certeza, interromperá a entrevista por diversas vezes para mostrar o novo CD de algum padre cantor (isto agora virou moda, por aqui) e a coisa vai morrer por aí”.
“Todavia, se o Senhor cair no programa do Camundonguinho, outro demagogo sem vergonha, ele vai querer, de qualquer forma, custe o que custar, o exame de DNA. Por conta, xingará seu pai de veado, sua mãe de puta e o coitado do carpinteiro José, de corno e, com certeza, principalmente se os três não derem as caras, o que é mais provável, o Senhor será realmente açoitado e crucificado, não sem antes ser taxado, rotulado e carimbado como o chefe supremo do PCC, ou do Comando Vermelho, ou, quem sabe, apontado como responsável pelo secreotário Garrotinho ou pela mulher dele, a Rosadinha, como o chefão do tráfego de drogas no Morro da Rocinha, ou do Vidigal, no Rio de Janeiro. Isto, se não lhe impingirem, igualmente, as mortes do jornalista Tim Lopes e do assaltante Sandro do Nascimento – aquele que seqüestrou o ônibus da linha 174, aonde, infelizmente, veio a falecer, a estudante Geisa Firme Gonçalves”.
Até o presente momento, não recebemos resposta de Jesus.


Infância


“Tanto vai a nada a flor que um dia se despetala.”

Guimarães Rosa

Quem poderia imaginar uma loucura dessas? Eu desejava plantar uma semente de urubu no fundo do quintal lá de casa para ver se nascia uma ave igual às muitas que avistava da janela do carro de papai, quando ele vinha me buscar no final de semana, para eu ficar com ele em seu apartamento, na capital. Há curto tempo, ele havia se separado de mamãe e, desde então, passei a dividir as loucuras do vaivém incessante, entre a cidade barulhenta e a roça, esta despojada dos espetáculos que enchiam meus olhos de menino a uma semana no albor dos oito anos.
Tinha verdadeira adoração por meu pai. Ele era o meu herói de todas as horas. O homem forte que lutava com dragões gigantes e vencia as batalhas mais difíceis e impossíveis. Pouco acima da linha dos 30, profissional conceituado na firma onde trabalhava, procurava manter o ritmo de antes, quando ainda vivia com a gente. Não deixava me faltar nada. Do computador moderno ao celular de última geração, do brinquedo mais sofisticado aos jogos de vídeogames recém-lançados no mercado; sapatos e roupas com as assinaturas das melhores grifes. À mamãe, também fazia graças elegantes, marcando presença constante. Não porque quisesse tê-la de volta, em absoluto. Simplesmente seu coração era grandioso demais e o amor que nutria por nós ultrapassava os limites do mensurável.
Quando o questionava sobre morar novamente embaixo do mesmo teto, ele, muito polidamente, ficava em silêncio. Um silêncio que chegava a ser constrangedor. Despistava, mudava de assunto e, por fim, para não me deixar totalmente sem resposta, inventava uma desculpa esfarrapada, mas que, bem sabia, não convencia meu ego interior, sedento de alguma coisa mais concreta.
Eu era uma figura esguia, porém franzina e tímida, alvo fácil dos guris mais corpulentos, que, vez por outra, inventavam de querer esperar por mim na porta da escola, para me descerem a lenha nos costados. Me chamavam de “galinho rico”, porque a melhor mochila era a minha, como a calça do uniforme e o tênis. Enfim, implicavam até com a merenda que eu levava na lancheira. Por isso, tinha raiva deles, um ódio mortal, um sentimento que, se pudesse ser posto à prova, aniquilaria a todos só com a força do pensamento.
Quem sabe fosse essa a razão maior de eu querer plantar uma semente de urubu lá nos fundos do terreno de casa. Se pudesse comandar a ave, como num jogo, certamente não pensaria duas vezes para ordenar que arrancasse o couro daqueles molecotes desgraçados e depois deixaria que o bicho devorasse suas carnes fedorentas até atingir os ossos. Não sabia, claro, que os urubus não matam, apenas se alimentam de carniça. E mais: desconhecia o princípio da vida. Eles não nasciam de sementes jogadas à terra, como se fossem plantinhas caseiras que floresciam e se tornavam adultas com o passar dos dias. O processo era um pouco mais complexo, e a sua formação estava muito aquém dos meus conhecimentos limitados.
Mas o dia de hoje tinha um motivo a mais para ser comemorado. E não somente pelo fato de papai ter vindo me buscar na roça. Uma satisfação profundamente marcante regozijava meu mundo de criança mimada: o aniversário dele. Essa data não poderia passar em branco. Mamãe, dias antes, comprara um presente requintado para que lhe fosse dado. Nunca me senti tão próspero — apesar da pouca idade —, tão orgulhoso de mim, em poder retribuir à altura tudo de bom que recebia daquele homem de cabelos cortados à militar, vestido a rigor, impecável em ternos de linho, com motorista particular que abria e fechava as portas do carro e fazia reverências engraçadas.
E mamãe? O que dizer dessa mulher maravilhosa que preenchia o meu outro lado? Se papai era o corpo sólido, ela, evidentemente, se constituía no espírito materializado, na beleza angelical e pura, na santa que venerava todas as horas, de modo incansável. Mamãe, era como uma bebida gostosa, um vinho raro e doce que embriagava os lábios. A fruta apetitosa que saciava a fome, a zelosa que distribuía carinhos e atenções especiais. Entretanto, com todos esses atributos, mamãe não passava de uma criança abandonada. Às vezes, eu sonhava que ela havia sido deixada por alguém que eu não distinguia bem a fisionomia. Seriam os pais dela, meus avós maternos? Ou será que ela não conhecera, ou mesmo, não tivera os pais? O fato é que a via dentro de um cesto, largada à sorte, abandonada ao relento, à frente de uma casa humilde e de um bando de transeuntes que passava ao largo da rua e lhe virava o rosto, indiferente à sua solidão.
Embora lutasse para parecer alegre, no fundo algo me dizia que um vazio muito grande embaraçava seus passos. E por que se separou de papai? Por quê a vida deles, a dois, não deu certo? Dava vontade, às vezes, de sentar em seu colo e perguntar, indagar, conversar como adulto, como gente grande. Contudo, nas poucas oportunidades em que ensaiei partir para o assunto, ao me aproximar, sentia-a temerosa, intranqüila, afogueada, tal como uma dessas muitas criaturas que vivem pelas ruas, perdidas, vegetando a contragosto, presas a esmolas e restos de comidas, como mendigos nas sinaleiras.
Agora, esperaria a hora oportuna para entregar o presente. Mamãe fizera uma manobra rápida para que o embrulho em papel vermelho com um laço discreto chegasse ao porta-malas sem que papai desse conta. Foi fácil. Não enfrentamos embaraços. Do nosso lado, dando uma força, o bondoso Eugênio, o motorista. Assim que saímos, vi pelo retrovisor que me dera uma piscadela, acompanhado de um sorriso de cumplicidade.
Finalmente chegamos à capital. Amava o burburinho dessa metrópole gigante, os ônibus, as pessoas de um lado para outro, atormentadas com seus afazeres. Semáforos demorados, a fila interminável de automóveis de todos os tipos e cores, buzinas, gritarias, a vida fluindo rápida, engolindo os minutos. Num dado momento papai se virou para meu lado e perguntou:
— Com fome?
Balancei a cabeça afirmativamente. Algumas quadras a frente, paramos num restaurante em que já havíamos estado anteriormente uma dezena de vezes. Uma moça solícita, logo que reconheceu papai, veio ligeira, ao nosso encontro, abrindo passagem e indicando um dos imensos salões luxuosos. Assim que nos sentamos à mesa, e depois de pedido meu prato preferido (o garçom sabia de cor, nunca mudava), disse que precisava ir ao banheiro. Uma mentira convencional. Na verdade, corri para os fundos do prédio onde havia uma saída para o estacionamento.
Eugênio, em pé, ao lado do carro (como a me esperar) se apressou a abrir o porta-malas e de lá me ajudou a retirar o misterioso embrulho. Quando retornei, papai falava ao celular, de costas para mim. Fui me aproximando, devagarinho, pé ante pé, a respiração contida, um sorriso largo, o coração batendo acelerado.
— Pai!
Ele se virou, interrompeu a ligação com um “Te ligo depois”, se levantou, colocou o aparelho sobre a mesa, abriu os braços e caminhou ao meu encontro. Dois passos, apenas.
— Campeão, o que é que temos por aqui?
Acocorado, me beijou longamente a testa.
Naquele instante, todos os que estavam acomodados em mesas à volta, pararam para nos observar. Ouvimos, de repente uma aclamada salva de palmas. Se tivesse combinado com alguém, aquela recepção momentânea, certamente não teria dado tão certo.
— Por essa seu pai não esperava. A cada dia você me surpreende. Obrigado, filho.
Fez uma reverência com a cabeça, em agradecimento às palmas recebidas, e, em seguida, voltamos a nos sentar. Antes do primeiro gole de refrigerante, enquanto desembrulhava a enorme caixa com a velocidade febril que atropelava a sua idade, me virei para ele e comecei a falar. Tudo o que havia em volta da gente me dava a impressão de estar em estado de suspensão, de enlevo e de graça. Eu sentia que os pratos, os copos e os talheres postos sobre a mesa vibravam com a nossa presença.
— Queria dizer uma coisa — falei com efusão —, mas não sei como começar. Só sei que amo muito o senhor e quero que o senhor nunca se esqueça de mim.
Papai se deixou envolver, encantado pela felicidade que sentia. Capturei duas lágrimas rolando pelo canto dos olhos, escorrendo, ligeiras, por sobre as maçãs do rosto. Parecia embalado por um doce acalento, ao tempo que lutava, com todas as forças, para fugir de lembranças e melancolias amargas que o definhavam interiormente. Nesse instante, embora não entendesse muita coisa do mundo dos adultos, vi, diante de mim, um homem forte, mas sozinho; senhor absoluto de si, mas desprotegido; dono da verdade, mas amargurado; desorientado no espaço, como se tivesse perdido a noção do essencial e se sentisse, por isso, preso nos laços do impenetrável de seus pensamentos mais lúgubres. Recordo que não consegui conter a emoção e me abri num choro soluçante que demorou a passar. De súbito, ele deu comigo a observá-lo. Nossos olhos se encontraram, ele se perturbou. Constrangido, vacilou, ameaçou baixar a cabeça, mas acabou sustentando o olhar e enfim se abriu num sorriso mágico.
— Você será sempre o meu campeão. Não importa quanto tempo passe, jamais deixarei de amá-lo. Você foi, é, e será sempre o presente mais bonito que recebi lá do céu. E sabe de uma coisa? Só posso agradecer à sua mãe por isto e também por este momento. Acredite, meu filho, ele será eterno.
Após essas palavras, me abraçou novamente e tomou as minhas mãos entre as suas. Até hoje, tantos anos depois, guardo, ainda, dentro de mim, o encanto e a magia daquele instante, como se fosse único e verdadeiro. Aliás, foi realmente único e verdadeiro, puro, como seu gesto bucólico de pegar as minhas mãos e de aninhar minha cabeça contra seu peito, e eu me lembro que me senti feliz e seguro – seguro e feliz - ouvindo as batidas descompassadas do seu coração.













Os gritos no silêncio


Outro dia me hospedei num hotelzinho do interior, onde participei de uma cena inimitável, hilariante, diferente, com certa pitada de humor, mas, ao mesmo tempo, de embaraço, vexação e constrangimento. O porteiro me alojou junto com meus bagulhos no único buraco vago existente, já que os outros apartamentos estavam ocupados. Como as horas beiravam as duas da manhã, o mais sensato foi me conformar com aquelas quatro paredes nojosas, cheias de mofo e de teias de aranha. Isso, sem falar da velha cama de solteiro barulhenta e ruidosa, fedendo a mijo, com o lençol ensebado e gorduroso e o travesseiro sem fronha.
Para completar a má sorte, um aparelho de televisão do tempo do ronca, gerando chuviscões em parceria com imagens distorcidas e fantasmagóricas. Mas isso não era, ou melhor, não foi tudo. O bicho pegou para valer 20 minutos depois. Já me acomodara entre o cansaço e a vontade de dormir, preso aquele marasmo enfadonho, contando bichanos na gateira, à espera do sono que em vão tentava conciliar. No aposento contíguo, alguém começou a gemer. Seria um doente? Inicialmente, só se distinguia algo parecido com hum... hum... hum... hum... hum...
Esses sons aumentavam de intensidade gradativamente. Às vezes, se tornavam nítidos demais; noutras diminuíam, até não se ouvir absolutamente nada. Logo em seguida, recomeçavam, se prolongavam e, estranhamente, ficavam repetitivos. Que chateza!
— Hum... Hum... Hum... Hum... Hum...
De repente, uma voz feminina e melodiosa irrompeu em meio a toda aquela confusão de rumores, como se alguém estivesse na iminência de explodir para um gozo incontrolável e prazeroso.
— Vamos, amor! Assim, assim... Vai... Vai... Ai... Ai... Assim! Vai... Vai... Mais fundo, assim, ai... Aiiiiiiii...
Evidentemente, se tratava de um casal fazendo amor. Não havia mais dúvidas. O interessante é que só a mulher manifestava a tensão pela qual passava, abrindo a boca e soltando palavras voluptuosas e cheias de deleites sensuais.
Imaginei a fêmea em delírio, alucinada, segurando os cabelos com as mãos, cavalgando, desatinada, a boceta gulosa engolindo a pica do macho, num vai e vem intermitente, o traseiro rebolando descompassadamente, freneticamente, como se quisesse fundir o calor das suas entranhas ao suor que brotava do parceiro. Todavia, o que me deixava prostrado e boquiaberto, meditativo e intrigado, era o sujeito. Ele não falava. Geralmente, nessas horas do rala-e-rola, por mais fechado, ou por mais inibido que alguém possa ser, sempre há o desprendimento, o devotamento e a abnegação, à medida em que um vai conhecendo o outro, seja na troca das carícias, seja nos afagos e mimos, ou nas lisonjas e branduras. Mas o cidadão não saía do hum... hum... hum... hum... hum..., como uma agulha empacada em cima de um disco de vinil arranhado e, nessa confusão, só me chegava aos ouvidos a voz da vedete que, naturalmente levada pelo apogeu do prazer da penetração, quebrava o silêncio terno da madrugada longa e fria.
Nervoso, e comendo as unhas, arrisquei abrir um pouquinho a porta de madeira, bem lentamente, para não ranger as dobradiças e ver se, do corredor, distinguia algo que revelasse o segredo. Contudo, ao tentar meter o bedelho, percebi que outros albergados faziam o mesmo, olhando cada qual para um lado e todos para lugar nenhum, escudados pelas frestas das portas entreabertas. Com cuidado, voltei à postura de antes. Nessas alturas, o rebuliço doidejava longe.
— Vou explodir — gritava, eufórica, a estrela de toda a energia.
E o sujeito:
- Hum... hum... hum... hum... hum...
- Assim... Assim... – prosseguia ela, abrasada e inflada - Vai, agora, vai, vai, aaaiiiiiii... E o hum... hum... hum... hum... hum... decididamente não cessava.
Por voltas das três, saí do ar. Ao romper de uma manhã bonita e ensolarada acordei sobressaltado. Pulei, ligeiro, espantei a cara mal repousada e cheia de sono, fiz a barba e em seguida tomei um demorado banho gelado. Desci às nove horas em ponto para o café. No salão reservado ao desjejum, deparei com vários grupos de homens e mulheres já acomodados às mesas. Procurei uma que estivesse vaga para me sentar. Notei, então, que todos riam baixinho, espiando discretamente para um balcão de madeira bem ao fundo da sala. Segui o olhar nessa direção com a curiosidade à flor da pele e esbarrei frontalmente com uma loirinha capaz de virar qualquer cabeça masculina. Trajava, a cobiçável, um conjuntinho de lycra branco muito curto, que deixava, à mostra, tudo o que nela havia de melhor, além de um bonito e charmoso par de pernas bem torneadas.
Não teria mais de 18 anos. Levava aos lábios um copo de leite, ao tempo em que acariciava o braço do seu acompanhante, um camarada baixinho e esquisito, aparentando uns 40, bastante simpático e carismático. A garçonete chegou para servir. Ao me virar, notei um sorriso maroto dançando nas covinhas finas de seu rosto ondulado. Em tom baixo, para não chamar a atenção, arrisquei perguntar:
— O que há com os dois?
— O senhor não ouviu nada esta noite?
— E como! Então eram eles?
- Em carne e osso.
- Quase não consegui me segurar no colchão...
— Nem eu...
— Como?
— Culpa deles!
— Tudo Bem! Depois, em outra noite, em outro hotel, em outra cidade, juro a você que tiro o atraso. Afinal, cá entre nós, o que existe de extraordinário em ouvir, madrugada adentro, um parzinho tão romântico (olhe para eles, não são engraçadinhos?) fazendo um amor gostoso, transando numa boa, sem medo de ser feliz? Quer saber? Essas coisas ativam os batimentos cardíacos, estimulam a circulação do sangue e encorajam a gente a continuar vivendo.
Disfarçando a vontade de soltar de vez o riso, ela inclinou a cabeça e sussurrou bem perto de meu ouvido.
— O senhor me perguntou o que existe de extraordinário em ouvir um parzinho tão romântico transando numa boa?
— Sim!
— Ele é surdo e mudo! Isso é o que torna a coisa engraçada!
































Dieta dos Pontos


Fosfolônio, como sempre fazia antes de ir para o trabalho, encostou o carro junto à calçada defronte de uma farmácia. Estava furioso em decorrência de uma cefalalgia que o atormentava havia anos. Por essa razão, mais uma vez, iria comprar um analgésico. A coisa se tornara rotineira. Só mudavam os lugares onde parava. Cada dia pintava em seu caminho uma drogaria diferente. Saltou do veículo e entrou no estabelecimento, indo direto ao balconista:
— Bom dia. Vê aí, por favor, um remédio para dor de cabeça...
— O cidadão tem preferência por comprimidos ou gotas?
— Qual o mais eficiente?
— Depende do que o senhor esteja sentindo!
— Dor de cabeça...
— Perfeitamente. Mas onde, exatamente?
— Na cabeça, ora essa!...
— Sei que é na cabeça, mas compreenda a insistência...
— Entendo seu desvelo e sinceramente agradeço. Que diferença faz?
— Muita. Levando em conta o lugar exato, poderá não ser o que o senhor pensa que é.
— E como fazer para atinar com o “xis” dessa porcaria?
— Veja bem. Se o senhor mostrar a localização, talvez cheguemos a um consenso.
— Já falei.
— Não é bem assim. Preciso que indique a posição.
Meio sem paciência, Fosfolônio levantou a mão esquerda e apontou a parte posterior do cachaço junto à vértebra cervical.
— Aqui.
— Posso ver?
— A dor?
— Não, cavalheiro. O ponto onde ela mais lhe castiga.
Fosfolônio girou o corpo ficando quase de costas para o atendente.
— À vontade.
O rapaz tocou com os dedos, projetando ligeira pressão sobre a pele.
— Hum! Nesta região não é dor de cabeça.
— E o que é?
— Enxaqueca.
— Enxa... Enxa... Enxa... Enxa o quê?
— Enxaqueca.
— Certeza?
— Absoluta. Sei diferenciar dor de cabeça de enxaqueca e vice-versa.
— Não é a primeira vez que esse troço me ataca.
— E o que o senhor toma nessas ocasiões?
— Ora, Doril, Anador, Tylenol, Melhoral, Dipirona, Dorflex, Paracetamol, AAS, qualquer bosta...
— Essa é a razão!
— Que razão?
— Que o seu mal não cura. O senhor ingere substâncias terapêuticas erradas. Lembre sempre: auto-medicação não traz soluções, cria problemas.
— Mas é uma dorzinha ingênua...
— Que pode transformar seu quadro em meningite, tonteira, virar hemorróidas, tirícia, hepatite ou até descambar para um aneurisma cerebral com parada cardíaca irreversível.
Fosfolônio deu uma risada sem graça.
— Meu prezado, quem atura uma esposa rabugenta igual à que tenho em casa, mais uma sogra chata, de lambuja e, ainda, duas cunhadas de contrapeso, o resto acaba virando café pequeno...
— Falo sério. Não estou brincando.
— Sendo assim, o que aconselha?
— Bebe?
— Se algum companheiro lá do trabalho me convidar e pagar uma geladinha, não rejeito. Sabe como é: não sou de ferro.
— Fuma?
— Por tabela.
— Não entendi.
— O pai da minha mulher. Meu sogro. Aliás, o infeliz come com farinha...
— Com farinha?
— É. O desgraçado acende um cigarro de 10 em 10 minutos. Empesteia com uma fumaça nojenta todos os ambientes da casa, ou seja, dos quartos ao banheiro. Até já me transformei, como dizem na linguagem popular, em tabagista passivo. Ou seja, sou obrigado a respirar nicotina, da braba, 24 horas por dia. Ai de mim se abrir o bico e reclamar. Suportar um velho asqueroso, sogra e esposa é dose para elefante. As adolescentes, então, Credo em cruz! Por isso, ao sair para a rua, a primeira coisa que me vem à mente é uma porta de farmácia. Estou nessa rotina desde que me entendo por gente.
— Uma pena!
— Alguma sugestão?
Antes de responder, o vendedor foi até uma das prateleiras e de lá regressou com uma caixinha.
— Injeção de Novalgina. É tiro e queda.
— Injeção?
— Não há coisa melhor. Inclusive, mais eficaz que os comprimidos. Age rápido. Pá, puf!
— Odeio seringas e agulhas.
— Única alternativa. Em dois segundos lhe aplico isso nas nádegas. O senhor sairá com a alma leve.
— E eu, certamente, com a bunda doendo. Desculpe, não quis ofender. Calma! Não existe essa droga por outra via?
— Que outra via?
- Sem ser na... Sem ser no traseiro?
— No braço. Cortamos estrada fazendo um intravenoso.
— Esqueça.
— Posso lhe prescrever um supositório de Transpumim, de Glicerina, ou de Magnopirol.
— E como eu usarei?
— Por um atalho não muito ortodoxo.
— Seja claro, por gentileza. Ortodoxo ou paradoxo. Desconheço os termos técnicos que vocês usam. Estou acostumado a chegar na farmácia e comprar remédio para dor de cabeça. O resto você já sabe: Sedalgina, Dorsedin, Febralgin etc. etc. etc...
— Bem, o supositório a gente costuma enfiar... Quero dizer, introduzir no orifício anal. Se o...
Nessa altura do bate-papo, Fosfolônio danou a rir desordenadamente. Uma grande parte das pessoas que circulava em outras seções, levadas pela curiosidade, resolveu fazer uma rodinha para bisbilhotar. Os dois seguranças de plantão, com o intuito de evitar tumultos e possivelmente algum tipo de roubo, se posicionaram estrategicamente, cada um por detrás de enormes prateleiras. De onde estavam, podiam acompanhar claramente o diálogo e vigiar o resto da loja, bem como a porta principal de entrada.
— Sabe, meu rapaz, conversei tanto, ou melhor, papeamos de tal forma que a enxa... Sei lá que nome você deu à coisa, foi, de vez, prás cucuias. Estou novo em folha. É como você, instantes atrás, havia previsto. Alma leve. Estou de alma leve. Neste exato momento estou me sentindo como um passarinho. E atente para um detalhe: não precisei levar a agulhada no caneco.
Virando, então, ora para os indiscretos que formavam um círculo de fisionomias engraçadas, ora para os demais funcionários acotovelados no balcão, Fosfolônio passou a falar e a gesticular um pouco mais alto que seu costume habitual. Parecia furioso e colérico, mas no fundo, estava calmo e tranqüilo, só queria sacanear e tirar um sarro com o pobre do atendente.
— Pessoal, imaginem que entrei aqui para comprar um comprimido para uma dorzinha chata, na nuca. O distinto queria me empurrar uma injeção. Recusei a proposta, claro, não sou besta. No entanto, dei linha à pipa para ver até onde ia a capacidade do espertinho. Sabem o que ele teve a coragem de fazer comigo?
O silêncio era total. Podia se ouvir uma agulha caindo.
— Me indicou um remédio... Pasmem... Me indicou um remédio para... para... Me indicou um remédio para enfiar no... no... no... fiofó... Acho que ele imaginou que eu fosse de Campinas, interior de São Paulo ou de Pelotas, no Rio Grande do Sul.
Girando nos calcanhares e motejando a mais não poder, Fosfolônio saiu apressado, deixando a multidão em meio a um mar de gracejos e zombarias. O infeliz do atendente, com cara de trouxa, sem saber onde enfiar o acanhamento, escondeu o rosto entre as mãos, tentando, inutilmente, ocultar a vergonha.



























Conflitos de conversação


O telefone toca insistentemente até que o rapaz que está ao lado dele, ocupado, pregando um fio na parede atende a ligação.
— Bom dia! O senhor tem aí Venocur Triplex DRG CT/6X10? E quanto é?
— Quem fala, por favor?
— Odair.
— De onde?
— Da “Zizinha”. Sou marido da “Zizinha”. Lembrou, agora?
— “Zizinha”!? Que “Zizinha”?
— Mãe da Elizabete, a “Loira”...
— Elizabete?
— Isso, irmã da Valdirene, a “Chorona”.
— “Chorona”!? “Loira”!? “Zizinha”!?...
— Meu Deus! Quem está falando?
— Pedro Propionato de Clobetasol.
— Como?
— Pedro! Pedro Propionato de Clobetasol.
— Que diabo de nome mais desgraçado esse seu, meu amigo. Por acaso é da farmácia do Trombofob?
— Perfeitamente.
— E o senhor, quem é?
— Já lhe disse: Pedro Propio...
— Eu sei, eu sei. Não precisa repetir tudo de novo.
— O companheiro está nervoso. Quer falar com quem?
— Droga. Aí não é da farmácia?
— Falei para o senhor, não tem dois segundos que, sim. É da farmácia...
— Cadê o Trombofob?
— Está atendendo um freguês. Quer aguardar só um instantinho?
— Merda...
— Isso fede!
— Como, cavalheiro?
— Desculpe, pensei alto.
— Me chama o infeliz do Trombofob.
— Meu senhor, ele está no balcão, atendendo um freguês. Não pode esperar?
— E o senhor saberia dizer, enquanto espero, se já chegou o Venocur Triplex DRG CT/6X10?
— Não, meu amigo.
— Que saco! Afinal, quem é o senhor?
— Pela última vez: Pedro Propionato de Clobetasol. Satisfeito?
— Não grite! Sou bom de ouvido. Passe o Trombofob ou vou desligar essa bosta.
— Faço isso para o senhor com todo prazer. Passo para o Trombofob, mas veja bem, sem a bosta.
— Cidadão, por gentileza, pare de me faltar com o respeito. Sou cliente dessa espelunca, há 20 anos. De mais a mais, tenho idade para ser seu pai. Agora, deixe de brincadeiras e me ponha na linha a porra do Trombofob.
— Um instante, por obséquio.
O proprietário, solícito, atende a ligação.
— Alô?
— Quem é?
— Trombofob, às suas ordens! Com quem falo?
— Sou eu, o Odair. Graças a Deus, meu amigo, graças a Deus! Quem é esse imbecil e abestalhado que você colocou aí, que nem atender direito um telefone o intelijumento sabe?
Risadas.
— É o Pedrinho, filho do Clobetasol, lembra dele? Trabalhou seis anos como motorista da Transportadora Manda que Chega. Vocês pilotavam carretas por esse mundão afora.
Houve um pequeno silêncio.
— Sei, sei... Acho que agora me recordo. Veja bem, não tenho nada com seu negócio, meu velho amigo Trombofob, mas se esse coió e paspalhão continuar atendendo seu telefone, você chegará às portas da falência em duas passadas. Mesmo sendo filho do... do... não importa. Quem sabe, se fosse o pai, a coisa até deslanchasse e seu comércio melhorasse! Não que seu estabelecimento seja ruim, pelo amor de Deus, longe disso. O problema é esse rapaz aí. Droga, o bordalengo fez a maior hora com a minha cara. Tratou a mim como se eu fosse um chavasqueiro da laia dele. Queria, na verdade, saber se você tinha recebido o Venocur Triplex e o safado tirou o maior sarro da minha cara. Nem ao menos respeitou os meus cabelos brancos. Se estivesse aí lhe dava uns bons tabefes no pé da orelha. Você me conhece de longa data e sabe como tenho o pavio curto.
— Desculpe pelo transtorno, amigo Odair, mas o garoto não está aqui para atender ninguém.
— Ainda bem!
— Ele só deu azar de falar com você porque trabalha na empreiteira que presta serviços à Companhia Telefônica. E você ligou justo na hora que eu estava com um freguês.
Risos de ambos os lados.
— O moço é instalador e veio consertar meu aparelho, que começou a dar umas chiadeiras estranhas desde ontem. Coincidentemente, é filho do nosso colega, o Clobetasol, que eu, como disse, trabalhou com você na transportadora. Mas, diga lá, meu companheiro, quantas caixas você quer que lhe mande, do Venocur?
— Duas.
— Como está a comadre?
— “Zizinha” vai levando. Um pouco cansada, por causa da idade. Nada sério, acredite.
— E a Bete?
— Estudando para as provas. Quer tentar vestibular para medicina.
— Valdirene?
— Viajou com o namorado, para o Rio de Janeiro. Devem voltar na segunda.
— Odair, meu amigo, vou mandar o moto-boy entregar em sua casa dentro de 15 minutos. Está bem assim? Deixa só eu conferir o preço. Enquanto isso, vou te passar novamente para o Pedro. Não o queira mal. Agora que já se conhecem, e o gelo foi quebrado, o papo entre vocês dois vai ficar bem melhor.
Apesar do Odair gritar quase a ponto de se esgoelar que nada tinha a tratar com o tal do Pedro -, mesmo sendo filho de um seu velho amigo de trabalho -, Trombofob passou o telefone às mãos do rapaz.
— Fale com ele. É o Odair. Gente finíssima. Trabalhou com seu velho, na transportadora. Puxe conversa enquanto atendo a moça que acabou de entrar.
Pedro retornou ao telefone.
— Então, seu corno de uma figa, o senhor conhece o meu pai? Por que não disse logo, seu filho de uma égua?
— Olhe meu simpático mancebo. Prefiro ficar por aqui, em silêncio, aguardando a boa vontade do Trombofob em voltar a me atender.
— Ora, fale comigo. Deixe de bancar o burrego orelhudo. Quando vou conhecer Elizabete, a “Loira”, ou a “Chorona” da Valdirene?
— Desculpe, meu filho. Não quero levar adiante nossa conversa. Se continuarmos com esse papo, você acabará descobrindo que comi muito a bundinha da senhora sua mãe.


A estátua bem dotada


Não é de hoje que observo o dia-a-dia de um mendigo que perambula pela praça da matriz com as mãos estendidas à caridade alheia. Ele adotou um dos muitos assentos de alvenaria à frente da porta principal que dá acesso à igreja e à saída dos fiéis. Com uma latinha de extrato de massa de tomates às mãos, nos finais das missas de domingo, faz a festa. As pessoas do interior, em sua maioria, penalizadas, e vendo seu estado tão deplorável, acabam por dispensar algumas moedinhas perdidas nos bolsos.
Também de cara para o santuário, uma estátua de corpo inteiro do doutor Praxedes Tibiriçá garante a lembrança do primeiro prefeito eleito pelo voto direto. A figura desse homem mítico e político notável — afora o fato de, em vida, ter sido um tremendo de um galinha: comeu as filhas e as sobrinhas mais bonitas dos fazendeiros em troca de favores que lesavam o interesse público —, em pedra, ocupa uma base de granito com quase dois metros de altura. Iniciativa dos moradores, numa parceria com a administração atual, é o reconhecimento aos relevantes serviços prestados em prol do vilarejo e de toda a comunidade, que não chega a três mil eleitores.
Às costas da escultura, um coreto. Em volta dessa construção, o que outrora poderia ser chamado de um belo e bem cuidado jardim. E, cercado pelo que restou deste, um chafariz inundado por águas turvas, com larvas de mosquitos que proliferam a céu aberto. Em tempos passados, uma bandinha regional alegrava as noites dos finais de semana. Era o momento em que os jovens, principalmente casais de namorados, se acotovelavam no local, sentados ou deitados na grama verdinha, para um bate-papo ou troca de carícias mais íntimas.
Ficavam por ali até que o Fusquinha da Polícia Militar, com dois soldados a bordo, dava uma volta estratégica em torno da praça e, então, um a um, todos se recolhiam. Tinham que enfrentar o pesado batente da segunda-feira nas lavouras das fazendas dos senhores do café. Hoje, o velho coreto está às moscas. Virou morada de pombos e cachorros vadios. A grama cresceu assustadoramente e encobriu o que havia de meigo, bonito e aconchegante. Sem falar no mau cheiro que infesta o ambiente e espanta os idosos que buscam, ainda, como nos saudosos tempos, algumas horinhas de descanso à vista amena da Lua.
Por essas razões, o mendigo se apossou de tudo. Como um rei, ocupa, à revelia das autoridades, a saleta onde os músicos, sob a batuta de um corifeu, se agrupavam para afinar instrumentos, trocar idéias e ensaiar as marchinhas que seriam executadas a partir da derradeira missa do falecido padre Tinoco. Nesse diminuto espaço, ele come, faz as necessidades fisiológicas, toma banho com a água podre do chafariz, dorme a sono solto e prepara o espírito, para, no dia seguinte, estar em forma e bater pernas em busca de comida e alguns trocados para manter aceso o vício do cigarro bailando nervoso de um canto a outro da boca.
Numa dessas espreitas, acabei flagrando o que não devia. Depois que a multidão bate em retirada, aparece seu Leporace, velhinho de 90 e poucos anos, figura do folclore da cidade. Barbas e cabelos brancos, rugas indômitas e secretas esculpidas pelo rosto rutilante, pincenê nos olhos, o corpo já bem envergado, andar vagaroso como se a âncora do barco do seu destino, jogada ao mar das recordações, quisesse arrastá-lo em direção a um porto eterno. É ele que apaga, uma a uma, as chamas dos lampiões a querosene que ainda guarnecem a iluminação da praça, bem como das ruazinhas estreitas que desembocam nela. Vocês podem não acreditar, mas passados mais de 100 anos do achado de Thomas Edison, os vereadores votaram contra o projeto que previa a colocação de lâmpadas modernas.
O pobre ancião leva uma eternidade enervante para cumprir, à risca, esse ritual. Como são muitos os bicos, repete os gestos bem lentamente. Dá a impressão de que, no poste seguinte, não conseguirá levantar o cabo do bastão para pôr fim à tênue luminescência que vacila, decadente e trêmula, produzindo uma claridade fraca e agonizante. É exatamente logo após esse momento, quando o cenário inteiro se vê envolvido no silêncio, que o sem teto assoma o rosto na soleira do batente e, como um rato arisco à procura de um pedaço de queijo, espia com seus receios e temores em todas as direções.
Lembra um moleque assustado, melancólico e sério, metido em sua dor visceral, com medo de enfrentar a escuridão, temendo, talvez, sem o calor da saia da mãe, se deparar, frente a frente, com o bicho-papão, montado em seu cavalo veloz. É como se, naquela sua existência miserável e medíocre, a noite, demasiadamente densa e complexa, povoada por fantasmas iracundos e chegados de todos os quadrantes, tivesse o poder de aumentar a solidão pesada que o devora.
Do meu posto bem guardado por um providencial pé de pau-brasil — que, imponente, viceja fronteiriço à janela do quarto da casa de família onde alugo uma vaga —, acompanho, tranqüilamente, os movimentos externos sem ser descoberto. O interior do aposento onde fica minha cama de solteiro, por sua vez, é bastante propício a essas vigílias. Permanece em cálida penumbra, só violado, na sua totalidade, pelo brilho do mostrador do relógio digital do vídeo cassete sobre a cômoda, marcando o adiantado das horas com uma luz verde e sem viço.
O sujeito que vigio lá fora é um alto, moreno, olhos verdes, tostado de sol, atitudes seguras e andar elástico. Fico a me perguntar constantemente, por que esse infeliz, bem apessoado, optou vegetar as custas de restos e sobras, se poderia trabalhar, viver com dignidade, casar, ter filhos e, sobretudo, prosperar como os demais cidadãos deste pacato lugar? Nada, até agora, me fez atinar com uma resposta coerente.
Mas, ei-lo, saindo da toca, de fininho, compenetrado, vestindo apenas uma pequena calcinha da cor da pele. Isso mesmo, uma calcinha de mulher! Seus passos o conduzem à peça de granito do doutor Praxedes Tibiriçá. Lá chegando, como se fosse a coisa mais natural do mundo, a criatura dana a se masturbar com a mão direita. Sem deixar de fazê-lo, sobe no pedestal e encosta a bunda na pedra fria onde, hipoteticamente, estaria localizada as genitálias do ex-prefeito. Começa a girar o próprio traseiro em movimentos cadenciados, até que, em poucos minutos, atinge o clímax. Emite, então, gritos estranhos e alucinantes. Ato contínuo, se põe de joelhos e imita uma prolongada felação. Investe, numa e noutra ação, uns 15 a 20 minutos. Conclui lambendo por entre as pernas do prefeito, tal como se, efetivamente, estivesse o doutor Praxedes com as coisas para fora, ao alcance de sua boca.
Corre um boato à língua solta por aqui. O prefeito Praxedes Tibiriçá, certamente, conseguiu se manter acima de qualquer suspeita em matéria de honestidade. A estátua em sua homenagem lhe faz esta justiça merecida. Todavia, por baixo dos panos, comentam, sustentava uma penca de mulheres. Os mais antigos, entretanto, afirmam, de forma categórica, que isso não passa de intrigas da oposição. Fofocas e futricas, olho grande, essas coisas de política interiorana. Pelo sim, pelo não, e pelo que meus olhos presenciam em relação ao mendigo e à sua estranha tara, o tal do doutor Praxedes Tibiriçá, que Deus o tenha, continua em plena forma, mesmo lá em cima. E, pior, arrebatando até seres do sexo oposto. Se, depois de morto, ainda desperta desejos escondidos, tenho cá minhas dúvidas, mas acho que, vivo, não era flor que pudesse, realmente, ser cheirada.










Estranho num lugar esquisito


Durante meses, Panetôncio freqüentou um consultório psiquiátrico com a reclamação de que havia um imenso jacaré debaixo de sua cama.
— E toda noite ele me mostra uma boca cheia de dentes...
— Não são dentes, são presas. E não se diz “boca”. Jacarés não têm boca, e sim mandíbulas.
— Não importa, doutor, o caso é que não agüento mais.
O médico tentava persuadir o paciente de todas as formas possíveis:
— Panetôncio, você não reside num prédio de apartamentos em plena Barra da Tijuca com segurança, circuito interno de televisão e alarmes por todas os cantos?
— Perfeito, mas o jacaré me amedronta apesar de toda essa tecnologia de ponta.
— Não existe nenhum jacaré.
— Claro que existe, doutor. E a cada dia parece mais furioso.
— Só na sua imaginação.
— Não é imaginação, doutor, é real.
— Sua esposa viu esse suposto jacaré?
— Não.
— Nem seus filhos?...
— É verdade!
— Seu sogro chegou a dormir uma noite no quarto e também nada viu, ou ouviu?
— Meu sogro dorme mais que a cama. É só recostar a cabeça e no minuto seguinte está contando carneirinhos.
— Sua sogra?
— Uma besta quadrada. Não enxerga um palmo adiante do nariz. A única coisa que sabe fazer, e cá entre nós, muito bem, é ver defeitos em mim e maquinar intrigas do arco da velha com minha mulher.
— Seu irmão dormiu lá com a esposa dele, na semana passada, não dormiu?
— Dormiu.
— E não viu nem ouviu absolutamente nada?
— Meu irmão, doutor, só pensa naquilo 24 horas por dia. Não tem uma noite que deixe a companheira descansar em paz. Esteja em casa ou na casa dos outros, o negócio dele é furunfar. Nem os dias sagrados, o senhor compreende, aqueles do famoso “lacinho vermelho”, ele respeita.
— Fazer amor faz um bem danado à saúde, Panetôncio. Alivia o estresse do dia-a-dia. A alma se liberta das tensões e fica mais leve e solta. Concorda?
— Concordo, doutor, concordo plenamente. Mas o senhor precisa entender o seguinte: balançando o esqueleto, ele não vai ver nada, como, aliás, não viu. E o jacaré continua embaixo da minha cama, tranqüilo, sem problemas, me enchendo o raio do saco.
— Insisto, Panetôncio, que não há nenhum jacaré debaixo da sua cama. Volte para seu quarto e procure ficar em paz. Sua esposa, da última vez que falou comigo, reclamou que, por causa desse bendito jacaré, você não só mudou de quarto, como abandonou a cama. Esse negócio está me cheirando a outra coisa...
— Que outra coisa, doutor?
— Amante. Você arranjou uma namoradinha e está engabelando dona Líliam com essa história sem pé nem cabeça.
— Não trairia minha cara metade por nada deste mundo. Ainda que encontrasse a Bruna Lombardi peladinha, dos pés a cabeça.
— Escute o que vou dizer: sua esposa com essa conversa toda, está abalada. Muito abalada. Sem contar que também está necessitada. Mulher necessitada é perigosa. Começa a subir pelas paredes, a se masturbar com cotoco de vela, embalagem de neutrox. Se você não dá conta, não comparece...
— Sei disso tudo doutor. Mas como posso me concentrar?
— Você pode. Você é um homem ou é um rato?
— Depois que o jacaré apareceu comecei a ter dúvidas sobre minha masculinidade. Acho que sou um coelho assustado. E coelho tem medo de jacaré. Li algo a respeito numa revista especializada em animais.
O doutor seguia na sua linha de conduta e perseverava com acirrada veemência na ânsia de demover a idéia fixa da cabeça de seu paciente.
— O jacaré -, Panetôncio, ou melhor, esse famigerado jacaré é apenas uma alucinação passageira -, fruto da sua estafa, da sua debilidade. Resumindo, meu amigo, coisa provocada pelo excesso de trabalho e pela fadiga. Você tem se desgastado muito, ultimamente. Sua ocupação, na Bolsa de Valores, compreendo, é muito pesada e irritante. Deixa os nervos à flor da pele, a cabeça a mil, os neurônios em frangalhos. Sei que não é fácil passar o dia inteiro com três telefones no ouvido...
— Quatro, doutor, quatro.
— Que seja! Três, quatro ou apenas um, não importa. O que conta, o que faz diferença, é você estar o tempo todo gritando, berrando e gesticulando feito um desmiolado e despirocado das idéias. Preste atenção no conselho que vou lhe dar, e vou fazê-lo como seu amigo, não como médico. Tire uns dias e saia com a família em férias. Coloquei, inclusive, meu sítio, em Pedra de Guaratiba, à sua disposição. Está lembrado?
— Estou, doutor. Mas o jacaré está cada vez mais esfomeado. Se o senhor, que é um especialista, que estudou anos a fio para procurar dar uma solução plausível para o meu caso e, no final das contas, não puder, ou não conseguir me ajudar, quem poderá me levar à cura dessa merda, ou à merda dessa cura?
O rapaz continuou a freqüentar, ainda por um bom tempo, as seções no consultório, como sempre fazia, todas as quartas-feiras, na parte da tarde. Com isso, o médico estava quase convencendo a criatura de que tudo não passava, realmente, de fantasias e devaneios oriundos de um desgaste físico e mental acima da linha do ponderável, e que, em decorrência disso, se levasse os próximos encontros mais a sério, logo sairia completamente restabelecido.
Entretanto, por três quartas-feiras seguidas, Panetôncio não compareceu ao consultório, nem comunicou à secretária o motivo de sua ausência. Apreensivo e visivelmente preocupado, o psiquiatra ligou para a residência de seu cliente.
— Gostaria de falar com seu Panetôncio — disse o doutor à mulher que o atendeu.
— O Pane morreu... Quero dizer, o Panetôncio faleceu... — respondeu a pessoa depois de um pequeno minuto de silêncio.
— Com quem falo?
— Líliam, a esposa.
— Dona Líliam, sou eu, o médico psiquiatra do seu marido.
— Doutor, desculpe não tê-lo avisado antes. E perdão também por agora. Não reconheci sua voz. Sabe como são essas coisas. Uma correria: liberar corpo no IML, correr atrás de funerária, avisar todos os parentes e amigos, cuidar do enterro, fretar ônibus, comprar flores, coroas, escolher cemitério, ver jazigo, colocar anuncio em obituário de jornal, marcar com antecedência a missa de sétimo dia, uma loucura!
— Estou pasmo, dona Líliam. Fiquei realmente sem saber o que lhe dizer...
— Pois então. O senhor que é o médico ficou assim, assombrado, boquiaberto, praticamente sem saída, imagina como estamos nós, que convivíamos diariamente com ele. E todo o resto da família. Uns irmãos que moram no Canadá e que não puderam vir para os funerais nem para a missa do sétimo dia, vão mandar celebrar uma em intenção da alma. A propósito, gostaria que o senhor estivesse presente. Vai ser na Igreja de Nossa Senhora das Cabeças, na Rua Belizário Pena, ali na Penha.
— Farei o possível. De qualquer forma, minhas sinceras condolências.
— Obrigada, doutor.
— Por favor, esclareça uma dúvida, dona Líliam. Panetôncio morreu... Morreu de quê?
— Foi devorado por um jacaré que estava escondido debaixo da cama dentro do nosso próprio quarto.



Conseqüências de um esbarrão


Foi um encontro, aliás, uma trombada casual, muito ligeira, num dia em que faltou luz no prédio comercial onde o Eduardo e a Fernanda trabalhavam. Ela descia, afoita, para um lanche de 15 minutos na padaria da esquina. Ele subia para o sexto piso, onde possuía um estúdio de fotografias.
Na pressa, Fernanda jogou longe uma caixa repleta de envelopes que o rapaz carregava com cuidado especial. Se sentindo culpada pela trombada inesperada e, conseqüentemente, vendo o desespero do moço para apanhar os invólucros que se espalharam, se abaixou, solícita, e o ajudou a recolher os pertences.
— Perdão, perdão. Nossa, como sou desastrada. Não era intenção...
Eduardo, de cócoras, ia recebendo um a um os envoltórios e os colocando de volta na caixa, ao tempo que jogava a culpa para si próprio:
— Não há o que perdoar. Eu é que não olhava pra frente. Vinha com os pensamentos longe. Machuquei você?
Passando das palavras imediatamente à ação, depositou num canto os documentos — na verdade negativos de filmes — e acariciou o braço de Fernanda. Havia um minúsculo esfoladinho e brotava um filete pequeno de sangue.
—Está doendo?
Fernanda meneou a cabeça de modo negativo.
— Desculpe.
Os olhos de Eduardo, nesse instante, ficaram muito próximos da garota. Os lábios, perto demais, pareciam, na realidade, querer se juntar num beijo de intensidade voraz. Eduardo, contudo, era tímido para essas coisas do amor. Fernanda, por sua vez, nunca havia experimentado um trocar de salivas apaixonado, nem sentido um friozinho na barriga, como o que sentia naquele momento.
Não fosse um sujeito barrigudo com duas crianças pedir passagem, certamente os rostos de ambos teriam se unido no mesmo calor da emoção que os envolvia em cálida ternura.
— Você não me disse seu nome.
— Não! Sou o Eduardo.
Ela se abriu num sorriso largo e meigo.
— O meu é Fernanda. Qual é o seu andar?
— Sexto, 604.
— Décimo segundo, l.20l.
— O que você faz no 604?
— Sou fotógrafo. E você, no l.20l?
— Secretária de um consultório dentário.
Ficaram em silêncio por alguns minutos.
— Quer saber de um segredo? Estou precisando, não é de hoje, passar a mão em mim e fazer uma visitinha a uma cadeira de dentista. Meu sorriso anda meio desfalcado. Seu patrão por acaso é muito careiro?
— Não é patrão, é patroa. Boa de jogo. Faz qualquer coisa para segurar um cliente. A propósito: você me disse que é fotógrafo?
— Disse e confirmo.
— Lembrei de um detalhe interessante. Veja só como são as coisas. Mamãe, dias atrás, me disse que vai mandar fazer um book e me dar de presente no dia do meu aniversário.
— E quando é?
— Segredo. Não posso revelar...
— Nem pra mim?
Eduardo e Fernanda continuaram a jogar conversa fora e a trocar pequenos afagos e carícias. Pareciam colados no piso frio daquele lance de escadas. A pressa se dissipara como por encanto.
— Verei você de novo?
— Claro! Diga onde e quando?
— Calma! Dá pra mim o seu telefone?
— Não posso...
— E por que não?
— Se o der, ficarei sem.
Um sorriso cheio de graça bailou, iluminado, no rosto dos dois jovens.
— Então, me dá só o número?
— Só se você me der o seu antes.
— Certamente que sim.
Quase Fernanda perde a hora de voltar ao serviço. Eduardo também se esqueceu de tudo, até das clientes que o esperavam na sala. Subiram juntos, vagarosamente, agarradinhos um no outro, trocando palavras melosas.
— Eu fico aqui. Não quer chegar? Um cafezinho, ao menos?
— Meu tempo esgotou. Amanhã, tudo bem. Se os elevadores estivessem funcionando...
— Olha só como as coisas acontecem na vida da gente. Graças a uma súbita falta de energia acompanhada de uma ligeira colisão de corpos, você cruzou o meu caminho.
— Não foi bem um caminho, mas uma escada enorme...
— Que me fez ficar literalmente preso nos seus degraus.
Dia seguinte, voltaram a se ver e a se falar. Desta vez, não no interior do edifício, ou no lance de escadas onde tudo começou, mas num restaurante aconchegante, perto dali, com música ao vivo e até uma garrafa de champanhe, para comemorar.
De mãos juntas, rostinhos colados, corações batendo descompassados, iniciaram um romance bonito que, meses depois, acabou, realmente, em namoro sério, oficializado na casa dos pais dela, com direito a troca de alianças, presentes, bolo, muita cerveja, churrasco e uma recepção inesquecível para confraternização dos parentes, amigos mais chegados e o anúncio, em primeira mão, da vinda de um lindo bebezinho.
— Vai ser um menino.
— Qual o quê! É menina. E será linda como a mãe...
Foi um encontro, aliás, uma trombada, um esbarrão casual, muito ligeiro, num dia em que faltou luz no prédio comercial onde o Eduardo e a Fernanda trabalhavam. Ela descia, afoita, para um lanche de 15 minutos na padaria da esquina. Ele subia para o sexto piso, onde possuía um estúdio de fotografias.
Com esse casal, os desígnios de Deus seguem em frente. A história se repete e haverá de se renovar, indefinidamente. Na verdade, é o milagre da vida, através do seu cotidiano, dando continuidade ao essencial, promovendo a sua parcela de felicidade para que o dia-a-dia das pessoas não passe como o caracol que se desfaz em baba, ou como o feto abortivo que não viu a luz do sol.


















Sinuca de bico


Tramontino e mais cinco companheiros foram convidados para almoçar na casa do Zé do Pagode. Era aniversário do Carlinhos Salsicha e a data nunca passava em branco. Aliás, de nenhum deles. Sempre que havia festa, a turma se reunia e comemorava. Nessas ocasiões, a bagunça geralmente varava a noite. Desta feita, o local escolhido foi a residência do Zé do Pagode, por ser um pouco maior e contar com um privilegiado quintal com piscina e quadra de futebol. Antes da hora aprazada já estava a rapaziada ao redor do barzinho que compunha uma das peças principais da construção à espera das guloseimas que prometiam ser sortidas.
Tramontino procurara um lugar singularmente dotado de bons ares para se sentar. Da confortável acomodação, observava o hall, a sala de leituras e TV, o corredor — no fim do qual uma escada em caracol ligava aos aposentos do pavimento superior — e, à esquerda, a copa. Colada ao fogão, uma branquelinha dos cabelos cor de mel preparava os comes e bebes. Atarefada com as panelas sobre as chapas, a gazela se deslocava de um lado para outro atropelando o que encontrava. Enquanto isso, o moço não sabia se prestava atenção ao grupo que tagarelava ou comia com os olhos o shortinho de lycra, muito curto que mostrava o lombo avantajado da serviçal. Assim, entre política, oscilações do câmbio, queda do real, subida do dólar e outras baboseiras, Tramontino balançava a cabeça afirmativamente feito vaquinha de presépio. Suas vistas não desgrudavam da dança frenética que a gatinha imprimia às nádegas fazendo a boca sorver rapidamente cada gole da cerveja que despejavam em seu caneco.
Zé do Pagode, o anfitrião, parecia um rei. Ao lado, Pafunciano deglutia peito de frango desfiado. Luiz do Botão, juntamente com Carlinhos Salsicha (o que apagaria as velinhas), mais o Juarez da Birosca, incrementavam um sambinha de Noel Rosa batendo talheres nos cascos das garrafas. Uma zona! Tramontino continuava inerte, abobado, chumbado na cadeira. Grogue, o coitado roía as unhas em atitude descontrolada. A angústia maior se constituía em não poder agarrar literalmente aquela fêmea e desfrutar de sua companhia numa noitada inesquecível. O estranho é que a linda pérola loira tinha umas manias esquisitas. Ora metia o dedo no buraco do nariz, ora coçava aquele lugar secreto. A seguir, pegava nos alimentos. Esse procedimento em cadeia se deu com a salada de tomates, os bolinhos de carne e também com as laranjas que espremia para o suco. Tramontino assistia impassível e boquiaberto. Via a moça arrancar a sujeira do nariz e, sem o menor constrangimento, tocar nos pratos, nas panelas, nas batatas, na carne do churrasco...
De outra, puxava o shortinho que entrava pelo rego da bunda ou chuchava os ouvidos. Embora existisse uma torneira ao lado, em nenhum momento chegou dela se utilizar. Assim, entre emporcalhamentos e coçadas eróticas, 45 minutos depois o tão esperado almoço ficava pronto. Bocas e barrigas famintas se acotovelaram para saudar os caldeirões fumegantes. Pratos e mais pratos foram servidos. Que abundância! Luiz do Botão danou a comer feito louco. Carlinhos Salsicha, nem piscava, parecia ter chegado da guerra. Pafunciano se deleitava com a salada de alfaces e tomates. Zé do Pagode largou a cachaça e se concentrou na jarra de suco. Juarez da Birosca engrenou nos bolinhos de carne e comentou que jamais comera salgadinhos tão gostosos e suculentos.
Tramontino, contudo, nada ousou. Sequer experimentou o bife à milanesa, seu prato preferido. Nessa confusão, o desditoso meteu a cara no vinho e na purinha do litro branco. Fez, na verdade, uma mistura desgraçada, verdade seja dita. Saiu da casa do Zé do Pagode carregado por quatro. Um vexame! Por essa razão, deixou de freqüentar os lugares costumeiros. Não marcava presença às reuniões nem dava os ares da graça nos regozijos da vizinhança. No fundo, se sentia profundamente envergonhado, e mais, confuso consigo mesmo, pois, no íntimo, achava que deveria ter avisado seus simpatizantes sobre os modos pouco ortodoxos da incauta com relação à sua conseqüente falta de higiene e compostura. Algumas semanas depois, entretanto, o inesperado veio à tona e os seis amigos se cruzaram no Juarez:
— E aí, Tramontino? — perguntou Carlinhos Salsicha. — O que deu em você para fazer uma desfeita tão grande ao Zé do Pagode, ou melhor, a mim que?...
— Isso, Tramontino! — interrompeu Luiz do Botão. — Que mico você pagou! O que houve?
— Abra o jogo, homem de Deus! — insistiu Pafunciano.
— Desembucha logo! — obtemperou Zé do Pagode. — Seja o que for, já rolou. Não estou com raiva de você. Aliás, nenhum de nós. Somos parceiros de velhos carnavais. Põe para fora, alivia essa tensão.
— Eu... Eu... Eu...
— Vamos, criatura! — corroborou Pafunciano. — Não embroma. Bota aqui uma geladinha, ô Juarez e se junte à turma. Beberemos como velhos irmãos e companheiros para comemorarmos o seu retorno, Tramontino. E, é claro, saber tudo a respeito daquele malfadado almoço. Com certeza, brigou com a namorada.
— Decerto. Foi por isso que ficou de porre. Tivemos que levar você carregado, meu chapa. Isso, sem falar nos vômitos nojentos por todo o caminho...
— Mas diabos, meu chapa, conte de uma vez o que se passou?
Tramontino serviu um dos copos à sua frente. Virou numa golada só. Demorou alguns segundos para iniciar a narrativa.
— Enquanto vocês bebiam e conversavam, eu observava a empregada do Zé...
— Que mulherão! — lembrou Carlinhos Salsicha. — E que comida!
— Credo! Você já?...
— Não estou falando disso, seu tarado! Estou me referindo à comida... a comida que ela faz. É daqui!
— Os bolinhos de carne, puxa, uma delícia! — retrucou Luiz do Botão.
— É... Eu sei... Eu sei...
— E por que não os provou?
— Querem mesmo saber? Não vão ficar zangados? Pois eu conto.
Tramontino relatou, então, detalhe por detalhe, como as coisas aconteceram, sem omitir uma vírgula. Ao final da sua curta exposição, notou pelos semblantes que os ânimos estavam revoltados, aliás, revoltadíssimos. Percebera mais: havia metido os costados numa sinuca de bico.
— E você não deu nem um toque na galera?
— Deixou a gente comer meleca do nariz daquela piranha?
— E eu que mandei brasa na salada!
Partiram, os cinco, para cima do coitado. Não houve quem pudesse segurar os enlouquecidos. Tramontino, sem saída, entrou na porrada feia. Teve que ser carregado às pressas. Só que, desta, não por bebedeira, nem amparado pelos amigos, mas por populares que passavam na rua. Ficou na salmoura, internado, com a cara amassada e algumas costelas quebradas quase dois meses na enfermaria do hospital.















Quem mandou olhar o pinto?


Fazia exatamente três meses que Fernandinho Saraiva tinha perdido o emprego na fábrica de tecidos Santa Efigênia, a única industria que arrebanhava quase toda a população daquele lugarejo esquecido bem lá no fim do mundo. Por causa desse infortúnio inesperado, continuava desempregado, largado ao deus-dará, rolando pela pacata São Pedro da Cachoeira, sem um centavo nos bolsos, para um pão com manteiga e uma xícara de café. Sem ter o que fazer, não via como arranjar dinheiro rápido para pagar o aluguel da pensão onde morava, a conta da quitanda do Sinval, a do armazém do Marcão e até a da farmácia do velho Diclofenaco. Quase a arrancar os poucos cabelos que lhe restavam, parou, um instante, na praça da matriz, e se acomodou num banco diante do chafariz. Na verdade, o chafariz, não passava de um moleque de cimento armado, completamente nu, fazendo xixi numa espécie de tanque em formato de penico.
— Meu Deus! — cogitou com seus botões, enquanto espiava em derredor. — O que faço para sair dessa maldita pindaíba?
Pelo relógio da igreja, 9:35 da noite. Como chegar em casa com dona Angelina tirando plantão 24 horas? Pior é que a janela da peste da mulher divisava com a via de acesso ao seu quarto, se é que se poderia chamar aquilo de quarto. Se conseguisse entrar sem ser reparado, com certeza, tomaria um bom banho quente, relaxaria debaixo do chuveiro uns 40 minutos e depois, então, espicharia o cansaço doído do corpo rebentado na cama barulhenta.
Todavia, isso era praticamente impossível. A proprietária não baixava a guarda. Semelhava parentesco com o diabo. Nunca abandonava a vigília, nem para usar a latrina que exalava para os cômodos fronteiriços um cheiro repugnante de torcer até nariz de defunto podre. Sempre atenta, a megera não pregava olhos, varava a madrugada inteira fumando cigarro após cigarro, o que provocava em sua garganta uma tosse repugnante e interminável. Raios! Tinha que haver uma saída, uma solução que pusesse fim a sua desdita. Mas qual? De onde viria a tábua salvadora que o livraria do mar revolto?
Pensara em vender churrasquinho e pipocas na porta do clube, mas o clube (aliás, o único) só funcionava nos finais de semana e feriados. De segunda a sexta-feira, as ruas da pequena cidade ficavam às moscas, completamente despovoadas, tanto de forasteiros que cruzavam, indo ou voltando, para a capital, como, igualmente, de casais de namorados que afluíam de outras localidades próximas e se ajuntavam nos barzinhos e danceterias existentes. Em lugarejos do interior, a turma se recolhe bem mais cedo que o pessoal dos grandes centros. Logo depois da novela das oito, e, no domingo, ao terminar o programa “Fantástico”. Prática antiga, até porque, dia seguinte, o peso da segunda chegava arrebentando e sem dar tréguas. A labuta a enfrentar nos maquinários da fábrica de tecidos se fazia tão certa e temente quanto a presença fria da morte.
Desesperado, sozinho, com fome, sem nada na carteira para convencer um cego a cantar, Fernandinho Saraiva continuava no banco. Danou a roer as unhas num gesto de descontrole emocional. Às vezes, metia o dedo no nariz e retirava de lá do fundo uma meleca gosmenta. Em seguida, limpava na manga da camisa. Olhava para um lado, depois para o outro. Transeuntes cruzavam com ele. Crianças choravam ao longe. Cachorros latiam. Um casalzinho de adolescentes permutava carícias, encostado na parede do coreto. Um mendigo, de rosto agitado, procurava, no chão, algo para forrar a barriga. Enquanto isso, Fernandinho queria trocar as roupas, pegar uma ducha quente, descansar a carcaça, comer, beber...
Furioso, voltava às unhas e às sujeiras do nariz. Fazia aquilo maquinalmente, sem perceber. Inquieto, nervoso, deslizou a atenção dos olhos para o moleque do chafariz. Sentiu, de repente, que carecia urgentemente de um canto ermo onde pudesse aliviar a bexiga comprimida. A coisa, por dentro, andava prestes a estourar. Mijar, mijar, mijar. Precisava tirar a água do joelho. Mas tirar como? No meio da praça? Na grama do jardim? Saltou do banco, apressado, esbaforido. Lembrou de um espaço que seria ideal. O corredorzinho escuro e sem saída atrás da igreja, entre o santuário e os aposentos paroquianos do Padre Bartolomeu. Correu para lá. Realmente, uma ruela escura o aguardava. Mal chegou, abriu o zíper e colocou o troço para fora.
Foi aí que uma moça pulou diante dele, sozinha. Sozinha uma figa! A sem-vergonha saiu muito braba, levantando a calcinha e ajeitando apressadamente a blusa e a minissaia. Fernandinho se assustou com ela. Tanto que não viu quem a acompanhava: um puta de um armário embutido de quase dois metros de altura. O parrudo bateu em retirada, correndo e encobrindo o rosto, ao tempo que vestia, como um foguete, a camisa e abotoava o jeans. Naturalmente, os pombinhos, aproveitando o escurinho do gueto, transavam às escondidas. O problema é que a jovem, menina de família, para não ficar difamada e cair no escárnio popular, desandou a gritar como uma possessa:
— Tarado! Tarado!... Tem um maluco aqui mostrando o pênis. Socorro!...
Foi o que bastou para juntar uma pá de gente. Figuras de todos os cantos se acotovelaram nas janelas das casas, nas varandas, nos muros, nas portas das vendinhas. Encostou uma D20 com meia dúzia de soldados, a sirene ligada, faróis acesos. O barulho ensurdecedor quebrou o marasmo dos cidadãos mais pacatos. Dois grandalhões partiram à cata do infeliz, revólveres e cassetetes em punho. A santinha do pau oco, embora tivesse escapado de ser pega com a boca na botija, não se fez de rogada. Continuou levando adiante a falsa história que inventara. Afinal de contas, precisava manter em segredo seus encontros furtivos. Em contrapartida, resguardar a identidade de seu doce amado. Para tornar mais real seu propósito imundo, não se contentou só em apontar, mas também em reconhecer, sem dó nem piedade, o pobre desgraçado:
— É esse ai mesmo, sargento. Estava com... meu Deus, Credo em Cruz, ainda está com isso ai à mostra. Veio para cima de mim, querendo me agarrar, justo no beco do santo vigário.
Fernandinho, descoberto e... “reconhecido”, levou umas bolachas pelo meio das ventas, safanões e sopapos no pé do ouvido. Viu estrelas. Passarinhos cantando, violinos em concerto tocando a Florentina, do Tiririca.
— Vamos ter uma conversinha com o delegado, seu maníaco de merda.
O desafortunado saiu puxado, arrastado pela camisa, como um marginal perigosíssimo. E a rapariga, protegida do escândalo a gritar, eufórica:
— Corta esse malandro na porrada.
Sem entender nadinha de nada, Fernandinho não teve chance de esconder a arma de artilharia, o flagrante delito que causou toda a confusão. Lá foi ele para o xilindró. No meio das pernas, com a cabeça de fora, uma pica roliça e magra, um cacete franzino, murcho, todo molhado, que mal e porcamente conseguia segurar entre os dedos por causa da algema apertada. Em volta, a galera querendo linchar. Assistindo ao espetáculo, o menino do chafariz continuou como estava: parado, quieto, mudo, frio, indiferente, fazendo tranqüilamente seu xixi interminável, a bengala dura entre as mãozinhas pequenas, sem que ninguém lhe dirigisse um olhar de indignação ou de desaprovação.



































As relíquias que não envelhecem


Está de passagem, pela cidade de São Paulo -, mais precisamente na Praça da Sé -, em frente à Catedral, uma exposição itinerante de inestimável valor histórico para a humanidade. Ela apresenta um infindável rol de objetos sagrados dos tempos em que se faziam escavações em Eridu, Obeide, Susa e Tepe e se estudavam, em paralelo, as mulheres e a apostasia de Salomão.
Com certeza, não só os católicos, os crentes e os evangélicos assumidos e fervorosos deveriam visitar -, mas todos que -, de um modo geral, acreditam e crêem na Palavra e nas coisas da Bíblia, levando em conta, sempre, que o Deus Pai é um só para todos os povos existentes na face da terra, independentemente da denominação religiosa pela qual este ou aquele outro tenha optado. Eis algumas preciosidades que poderão ser vistas e até tocadas:
As duas únicas fraldas de pano (na verdade, cueiros) usadas no nascimento do Menino Jesus, sendo certo que, enquanto uma era lavada e secada ao sol, a outra Maria colocava na bunda da criança;
Uma pregadeira, presente de José, que traz fios de cabelos da Virgem, caídos após o anúncio da gravidez do Messias;
Um casal de mosquitos Aedes Aegypti mumificados, passageiros da Arca de Noé;
Lagar onde Gideão malhava o trigo quando o anjo de Deus lhe apareceu pela primeira vez;
A bacia e o pedaço de sabão em pedra onde Pilatos lavou as mãos;
O peixe que engoliu Jonas, num aquário de vidro branco, com água salgada retirada do Mar Mediterrâneo;
Fita gravada com as últimas palavras do apóstolo João finalizando uma de suas muitas pregações;
Os sete candeeiros citados no Apocalipse, novinhos em folha, bem como as sete lâmpadas, uma das quais queimada;
Cálamo feito com a pena do galo que cantou após Pedro ter negado Cristo por três vezes;
Cabeça bastante tostada da serpente que Paulo lançou ao fogo;
O machado de ferro com cabo de madeira de lei que Eliseu fez flutuar;
A queixada de jumento com a qual Sansão abateu mil homens e a placa da primeira funerária aberta por um senhor que ficou rico vendendo caixões para enterrar esses defuntos;
O tamborim que Miriã tocou depois da travessia do Mar Vermelho;
O sinete da tentação roubado do Museu Britânico, onde se vê, claramente entalhada, uma árvore, tendo à sua direita, um homem, e, à sua esquerda, uma mulher tirando um fruto e, atrás dela (como a lhe cochichar), uma cobra ereta com cara de cascavel mal-amada;
Retrato em preto e branco da família do rei de Lagás, seus filhos e servos, com inscrições explicativas;
Calcinhas com figuras de reis tarados — cujo uso era costume entre as prostitutas de prestígio de Sodoma e Gomorra — muitas delas com cheiro forte de enxofre grudado no nylon;
A intrigante capa de Aias, rasgada 12 vezes e, recentemente, adquirida por Zé do Caixão, cineasta brasileiro de prestígio internacional;
O camelo sob o qual cavalgou por longas horas, a intrépida Rebeca, de cabeça para baixo, quase a roçar os lábios no pau do animal, vez que não quis montar normalmente no lombo do bicho, como todas as pessoas que utilizavam aquele meio de transporte, ao partir para desposar Isaque, bem como a cópia do contrato milionário desse animal com a Rede Globo, para atuar na novela “O Clone”;
A corda que enforcou Lucas, na Grécia, e Tiradentes, em Ouro Preto, Minas Gerais;
Pedaço da lança que matou o incrédulo Tomé em sua derradeira viagem a Coromandel;
Saco de estopa onde colocaram o discípulo Bartolomeu para ser jogado ao mar;
Uma bandeja de porcelana com uma centena de denários, a moeda corrente no tempo do Império Romano;
Os cinco pães que Davi pediu a um sacerdote, mas não comeu, alegando que o diabo os havia amassado com os pés fedendo a chulé;
A última combinação, toda em seda, da Madre Teresa de Calcutá e a calcinha, usadas antes dela ser beatificada por Roma;
A Bíblia de Padim Cícero, com a qual o sacerdote rezou a última missa antes de falecer;
As muletas de um paralítico que viveu no tempo de Jesus;
Uma das orelhas embalsamadas de Malco;
A tampa do sepulcro onde o Redentor foi enterrado;
A túnica de lã de carneiro usada por Maria Madalena quando foi perdoada pelo Rei dos Judeus;
As 30 moedas de prata que Judas recebeu pela venda do Filho do Homem e o depósito dessa quantia numa poupança da Caixa Econômica Federal;
O Codex Alexandrinus na versão original, com prefácio de Austresgésilo de Athayde;
Certidão de Casamento de Caim com sua irmã, com a firma reconhecida do tabelião e os respectivos selos do pagamento das taxas;
Bisturi que Deus usou na realização da primeira cirurgia, quando retirou a costela de Adão para dar vida à mulher;
Um galho, em bom estado de conservação, do sicômoro onde Zaqueu subiu para ver o Nazareno passar;
As trombetas de chifres de carneiros que os sete sacerdotes usaram para aterrorizar a cidade de Jericó;
Certidão de Óbito de Matusalém;
O cinto de linho que Jeremias escondeu numa fenda da rocha junto ao Rio Eufrates;
As portas envernizadas (para conservar a madeira) que Sansão arrancou da cidade de Gaza;
O canivete usado pelo rei Joaquim, de Judá, para cortar as escrituras sagradas e jogá-las em pedacinhos no fogo de um braseiro;
As cinco talhas (uma quebrada) que Jesus utilizou para transformar a água em vinho e marcar o início de sua série infindável de milagres;
Réplica das camas de ouro usadas no Palácio de Assuero, bem como as cortinas brancas e vermelhas, de estofo azul e argolas de prata;
Grama (um pouco seca) do monte Ararat, onde repousou a Arca de Noé depois de navegar 40 dias e 40 noites debaixo das chuvas que geraram o dilúvio e por longo período enquanto as águas baixavam;
Relógio de bolso, com a correntinha de prata, que marcou as horas derradeiras que Jesus ficou pregado na cruz do calvário; e, muito mais.
Como se percebe, novidades magníficas e imperdíveis não faltam. Acaso fôssemos enumerar tudo, item por item, não caberia neste espaço. Da Praça da Sé, os organizadores do evento (que não se deixam ser fotografados nem filmados), metem os pés na estrada com destino a Porto Alegre, Brasília, Salvador e Manaus, não necessariamente nesta ordem.













Faca de dois gumes


As duas cinqüentonas conversavam animadamente sentadas, uma ao lado da outra, na ampla cozinha que abrigava um moderno fogão a gás, outro de lenha, refrigerador, forno de microondas, armário de três portas em inox e mesa redonda, com seis cadeiras, todas trabalhadas em madeira de lei. Num canto, perto do corredor que dava acesso ao quintal, uma pia de aço estava abarrotada de pratos e copos recém-lavados e à espera de serem enxugados e guardados.
— Sabe de uma coisa, dona Santinha? Essa noite eu tive um sonho estranho. Sonhei que havia morrido...
- Credo, dona Mercedes, que horror!
- Vou dizer uma coisa para a senhora. No dia em que eu tiver que morrer, de verdade, quero que aconteça não como se passou no meu sonho, mas que seja, pelo menos, bem de noite. Quanto mais tarde, melhor...
— Quer mesmo falar sobre isso?
- Acho que sim. Juro para a senhora que fiquei impressionada. No meu sonho parecia tudo tão real...
- Já que insiste nesse assunto, por que quer morrer de noite e não de dia, dona Mercedes? Qual a diferença?
— Porque, de noite, a gente pode tomar um bom e demorado banho, curtir o chuveiro, a água quentinha caindo sobre o corpo, as costas, os braços, passar um perfumezinho da Floratta in Gold, ou um Accordes, curtir os netos, as noras, os meninos, jantar mais cedo, sentar com tranqüilidade para ver a novela, ou assistir a um filme. Depois — imagine! — depois, tem aquele papo de estar dormindo e não acordada!
Dona Santinha estava radiante e eufórica. Dia sim, dia não, aparecia para fofocar. Adorava jogar conversa fora. Mal pulava da cama, tomava um rápido desjejum e saía em campo. E dona Mercedes, sabedora dessa fraqueza da amiga, aproveitava para dar asas à imaginação.
— Não entendi.
— Eu explico, dona Santinha. Quero partir daqui — como falam popularmente — quando estiver dormindo, roncando, babando, sonhando um sonho bonito, não igual ao que sonhei, repito. Pretendo morrer como um anjo. Ao menos, no instante derradeiro em que estiver para apitar, não terei que olhar para a cara da morte.
A vizinha arregalou uns olhos enormes e contraiu os músculos num trejeito estranho.
— E morte lá tem cara, dona Mercedes?
— Nem te conto! Dizem os antigos que a maldita assusta até o coisa ruim. Anda de preto, um par de botas até a altura dos joelhos e, para piorar o quadro, carrega, na mão, uma espécie de foice. Sem falar na voz...
— Que voz, dona Mercedes? Que voz?
Dona Mercedes chegou o rosto bem perto da amiga e quase balbuciou em seu ouvido.
— Cavernosa, fria, cortante, insólita.
A outra se benzeu, receosa. Tinha verdadeira ojeriza a que alguém falasse de morte. Mas o desejo de saber do alheio.
— E quem foi que já viu a morte frente a frente?
Antes de responder, dona Mercedes se levantou, caminhou até o fogão, acendeu um dos bicos e colocou o bule de café para aquecer. Retirou um cigarro do maço e veio fumar perto da janela.
— Quem viu? Tenha paciência. Falarei do santo e do milagre. O santo, melhor dizendo, a santa, Dona Maricota — esposa de um amigo meu, o Raimundo —, que reside na capital. Pois é. Dona Maricota, que Deus a tenha no merecido descanso e em sua poderosa misericórdia divina.
Dona Santinha igualmente se levantou de sua cadeira e se postou como um poste ao lado da amiga.
— Como sabe que essa tal de dona Maricota viu a... a... a coisa preta? Ela não bateu com as 12? Se ela foi para o espaço, se assentou o cabelo, como é que a senhora...
Dona Mercedes deu uma longa tragada no cigarro e assoprou a fumaça em direção ao teto. Em seguida, correu a retirar o bule que fervia e serviu duas xícaras.
— Vou tentar explicar. Dona Maricota, antes de empacotar de vez os ossos — meu Deus, que horror! —, quase espichou as canelas logo às primeiras horas da manhã, quando se dirigia de casa para a escola onde lecionava Matemática, num bairro próximo. No meio do caminho, resolveu dar uma paradinha na lojinha do companheiro. Ele tinha, ou melhor, ainda tem uma sapataria. No que sai do carro, deu nela um piripaque repentino...
— Credo em cruz! E aí?
— Dona Maricota caiu estatelada ao lado do automóvel. O seu Raimundo, que comia um pedaço de pão e tomava um copo de refrigerante, em pé, na calçada do estabelecimento, chamou o ajudante que trabalhava com ele e ambos acorreram em socorro da pobrezinha.
— Santíssima Virgem!
— Outras pessoas, ouvindo os gritos apavorados do sapateiro e do ajudante, prontamente acudiram em solidariedade. Colocaram dona Maricota num táxi que passava e tocaram, a toda velocidade, para o hospital. No curto trajeto para a emergência, ela viu a morte sentada a seu lado. O rosto em forma de esqueleto. No lugar dos olhos, dois buracos negros. Somente os dentes brilhavam, muito brancos, como marfim. E um cheiro forte, aliás, fortíssimo, de enxofre.
Dona Santinha estava branca igual um fantasma. Suas pernas tremiam, o coração batia descompassadamente. Mas a curiosidade falava acima de sua capacidade de saturação.
— E a morte, por acaso, gosta de enxofre?
— Ama. Ama de paixão. Minha falecida mãe dizia que enxofre espanta a vida. Morte não gosta de vida, mas de coisas mortas. Enxofre faz bem o tipo de besteira em que a morte vive com o nariz enfiado.
— Morte tem nariz?
— Não é bem um nariz. São cavidades, orifícios, a senhora sabe, né? Acima da boca e abaixo dos olhos. É por ali que a desgranhenta sente o cheiro.
— Estou horrorizada. Mas, e então? A morte fez o quê?
Dona Mercedes parecia uma atriz representando uma cena dramática. Sua desenvoltura teatral espantava. E encantava, também.
— Pois a figura deu um sorriso esquisito, fez uns hi, hi, hi, pegou dona Maricota pelo braço e lascou o veredicto final ou fatal, sei lá. Acho que, no caso dela, foi letal.
— Que veredicto?
Dona Mercedes fez uma pose deveras engraçada para imitar a morte conversando com dona Maricota.
— Chegou a sua hora. Venha!
Dona Santinha, nessas alturas, andava às quantas, arrepiada dos pés à cabeça devido ao medo que a invadia. Contudo, agüentava firme, não dava o braço a torcer. Queria saber mais.
— Prossiga, prossiga...
— Dona Maricota mal entrou no hospital os médicos acudiram com ela para a UTI.
— Continue...
— Lá, a pobrezinha permaneceu por uma semana. O Raimundo — esse foi o milagre! — deixou de comer. Ele nunca deixava de comer. Emagreceu. Era gordo feito um porco. Virou um palito de fósforo sem cabeça. Não saía de perto da esposa. Dia e noite no pé dela. Afinal, 40 anos de casado...
— E a sapataria?
— Na responsabilidade total do empregado. O Raimundo me contou que, numa semana, o fulaninho meteu as mãos pelos pés.
Dona Santinha tinha uma sombra de burrice bastante acentuada, além de ser lerda e abobalhada em relação a absorver certos lances que lhe eram passados. Custava, por exemplo, a entender coisas que estavam às claras e, por essa razão, dona Mercedes necessitava explicar duas, três vezes, ou voltar a conversa passos atrás, até a amiga entrar no espírito do verdadeiro teor do bate-papo. Na realidade, ela só queria saber do final da história. Entender pouco importava.
— Meteu as mãos? Meteu as mãos em quê?
— Ora, em que! Em que? Nos bolsos do patrão. O cara roubou. Tinha esse péssimo costume. Mas, então, morreu...
— O ladrão! Digo, o empregado do seu Raimundo, morreu?
— Por tudo quanto é mais sagrado, dona Santinha. A Maricota morreu. Abotoou o paletó. Adormeceu no Senhor. Bateu a pacuera, numa segunda, à meia noite. Um pouco antes, ela se debateu no leito, fez xixi, cagou nas roupas e nos lençóis, virou e revirou os olhos, deu uns gritos estridentes, gemeu. O Raimundo se aproximou, ela grudou no braço dele e aí... Babau! A morte entrou no quarto, desligou os aparelhos, e ainda apertou o pescoço da moribunda.
— A morte apertou o pescoço da velha?
— Pois sim. E não foi só isso, dona Santinha. A agourenta deu uns empurrões no Raimundo, que saiu feito um desembestado. No primeiro banheiro que avistou pela frente vomitou até as tripas do pai do pai dele.
Dona Santinha, a essas alturas, tremia mais que caniço em ventania. Nem o café quentinho, bastou para acalmar os ânimos. Desta vez, o desejo irreprimível da curiosidade havia levado sua estupidez um pouco longe demais. A mulher, na verdade, estava em vias de ter uma indisposição. Não deu outra.
— Acho que vou... Vou... Acho que vou pelo mesmo caminho desse tal de Raimundo. Posso usar o seu banheiro?
Poder, podia, mas não deu tempo. Dona Santinha botou tudo o que tinha direito, e o que não tinha, para fora do estômago. Vomitou feito uma bêbada desastrada que tomou todas, ali mesmo, no peitoril da janela. Acertou em cheio a cabeça da empregada que chegava da rua, justo naquele momento, vinda do supermercado. Após esse vexame, um calafrio repentino se transformou em dor de barriga e logo virou caganeira. Em decorrência disso, borrou literalmente as calças.
Enorme confusão ganhou forma. Os filhos de dona Santinha foram acionados, as noras trouxeram uma muda de roupas limpas. De repente, a casa de dona Mercedes virou feira livre: gente entrando e saindo para acudir e uns tantos circulando, querendo se inteirar dos fatos, levados pelo calor da bisbilhotice. De súbito, aconteceu o inesperado. O que ninguém havia previsto. O feitiço virou contra o feiticeiro. Quando se despedia da vizinha, já mais calma, no exato segundo em que segurava as mãos da contadora de histórias, e pedia desculpas pelo ridículo a que expusera não só ela, como toda vizinhança, Dona Mercedes começou a sentir fortes pontadas no peito, à altura do coração.
— É ela, Dona Santinha, é a maldita!
— Que maldita, dona Mercedes? É a dor? É a dor? Fala logo, desembucha.
Dona Mercedes, entretanto, mal conseguia respirar e se sustentar sobre os pés. Houve, nessa hora, uma inversão de papéis. Os presentes, estatelados, correram com ela para o quarto e a puseram sobre a cama. Danou a passar mal de verdade, sem fingimento algum, sem encenação. Os que vieram acudir dona Santinha partiram, às pressas, em socorro dos gritos da outra. Trouxeram uma garrafa de álcool, chamaram o farmacêutico, telefonaram para o médico, pediram uma ambulância. A empregada que havia ganhado a vomitada, interrompeu o banho, saiu do chuveiro às carreiras, enrolada numa toalha e, ao ver a patroa naquele estado deplorável, se atracou aos pés dela e começou a chorar feito uma criança desamparada. Pela surpresa que pegou a todos, bem como o sobressalto que se abateu de repente, a coisa não parecia ter jeito. Nem solução. Dona Mercedes, a velha contadora de histórias, a senhora que gostava de tirar sarro vendo o medo estampado nos olhos dos outros, estava agora, à mercê da própria sorte, dobrada sobre o corpo, agarrada fortemente aos lençóis e travesseiros. Na medida em que os minutos corriam, a infeliz mais se estrebuchava e se contorcia. Entrou num processo pelo qual passou a suar frio e a se debater ferozmente. O quadro parecia não ter volta.
— Sai de mim... Vai de retro...
Dona Santinha, ao lado, como os demais que lotavam a casa, choravam e tentavam ajudar a velha companheira e amiga. Na verdade, algo deixava claro, para todos, que não havia mais nada a ser feito.
— O que a senhora está sentindo dona Mercedes? – insistiu dona Santinha numa tentativa infrutífera de reanimar a moribunda. - É a primeira vez que sente esse tipo de mal estar? Quer que mande buscar algum remédio?
— Nããaao... Dona... San... San... tinha... Chegou... Chegou a minha hora. Está... Está acontecendo... como... como... eu sonhei. Eu... eu não lhe contei... o sonho... Mas... está... Está acontecendo tudo... Tudo como eu vi, essa noite...
- Esquece esse sonho macabro, dona Mercedes. Pense em coisas boas.
- Tarde... Tarde demais, dona Santinha. É... a... mor... te... mes... mo... em... car... ne... Em... car... ne... e os... so. Ela... está... Ela está... Aqui... Vai de re... de...
Foram suas derradeiras palavras.
































Só acontece com quem está vivo


Peguei, hoje cedo, o Luiz Cláudio, do 309, proseando animadamente com o elevador de serviço. Sabia que o cara estava meio lelé da cuca, mas não a ponto de se sentar numa cadeira, comodamente, acender um cigarro e, como se fosse a coisa mais corriqueira desse mundo, conversar com um elevador. Ainda mais em se tratando do elevador de serviço. Ao menos, se fosse o social...
- Você não se cansa de levar essa gentalha para cima e para baixo?
- Claro que me canso. Pior, contudo, não são as pessoas. Duro é aturar o fedor do lixo.
- Lixo? Que lixo?
- Todo santo dia, logo pela manhã, uma funcionária do condomínio desce com uma porrada de sacos de lixo. Vem lá do 23 até o 1°. Outro dia, num desses andares ela encontrou um cachorro morto, dentro de uma caixa de sapatos. Imagine só. O troço veio fedendo, fedendo tanto que cheguei a sentir dores nos cabos de aço que me sustentam.
- E você o que fez? Desmaiou?
- Não, meu filho, não posso desmaiar. Esqueceu que sou um mísero elevador de serviço?
- É mesmo. O que você fez para demonstrar a sua raiva e o seu protesto?
- Desci normal. Quieto, sem dar um pio. O bom cabrito não berra, já dizia o velho Atlas, meu pai. Quando cheguei lá na garagem, assim que a moça retirou todos os sacos, eu me enguicei.
- Você o que? Se enguiçou? Como?
- Subi correndo e travei a porta entre o 17 e o 18. A partir daí me recusei a continuar trabalhando o resto daquele malfadado dia.
- E depois?
- Tiveram que ligar para o plantão da assistência. Apareceu um mecânico por aqui quase às 8 da noite.
- Então foi positiva a sua parada estratégica?
- Você nem imagina, meu velho. Como o meu irmão social aqui do lado, está fora de uso, a galera, em peso, teve que descer e subir pelas escadas. Cá entre nós: adorei!


Toda vez que sento a bunda na privada, a descarga enguiça. Já pensei em trocar a posição da bacia, colocá-la, quem sabe, no lugar onde agora está o bidê. Como essa peça é antiga, e ninguém usa, talvez dê certo. O problema é que um amigo meu, o Andoba (parece até nome de remédio), veio aqui em casa, olhou tudo e disse que faria o serviço num final de semana.
No final de semana, realmente, deu as caras. Trouxe um ajudante a tiracolo, um tal de Valpakine Risperdal de Jesus. Os dois entraram no banheiro às oito da manhã e saíram pouco depois das duas da tarde. Trocaram os encanamentos do vaso, conforme havíamos combinado. Tudo às mil, até o sábado seguinte. Mamãe veio com Tio Berto almoçar e, à hora em que o tio resolveu escovar os dentes, ao abrir a torneira da pia, encheu as mãos e o rosto de merda.

Minha namorada Risoleta, feia de cara e boa de pescoço, se assemelha a uma girafa mal nutrida, principalmente pela manhã, quando acorda. Parou, semana retrasada, no hospital, em estado grave. E olha que só sentou na cama do meu quarto por cinco segundos, tempo necessário para amarrar o cadarço de um dos tênis e botar um absorvente no meio das pernas, porque a menstruação desceu com vontade e desenhou, com o sangue, uma figura esquisita bem no meio de sua bunda gostosa.
- Uma figura esquisita?
- Isso mesmo.
- Que espécie de figura?
- A do Roberto Jefferson chorando porque perdeu um dos cheques do “mensalão”.

Papai está realmente querendo deixar a gente maluco aqui em casa. Depois que se separou de mamãe, endoidou de vez. Deu para deitar num colchonete, no chão da sala, após o almoço, sem camisa, só de cueca, televisão ligada num filme pornô, a barriga para cima. Parece um rei. Antes, ao menos, desligava a televisão, vestia um pijama (lembrança do falecido irmão Juca) dava uns peidos fedorentos e depois virava para o canto e dormia. Para felicidade nossa, arranjou uma companheira. Um amor de pessoa. Paloma, uma gatinha linda e maravilhosa, no albor dos 16, mais nova que papai, 32 anos. Lembra a top carioca Daniella Sarahyba. A mocinha costuma acompanhar o velho se acomodando com, ele no minúsculo colchão. O quadro é o mesmo: a televisão ligada num pornô, ele sem camisa só de cueca, ambos de barriga para cima. Quando papai peida, ela sorri um sorriso encantador e diz que seus puns são os mais cheirosos do planeta. O problema é que ela vem para o lado do velho vestida com uma camisa comprida, sem nada por baixo, a não ser uma calcinha tão pequena que se duvidar é capaz de caber inteirinha dentro da minha vontade de agarrá-la no banheiro da empregada. Até aí, tudo bem. A confusão se forma, realmente, depois que os dois ferram no sono: a camiseta que Paloma usa sobe misteriosamente até a altura do pescoço, deixando tudo que ela tem de bom e de belo, à mostra e a visitação de desejos mais eloqüentes. Eu e meu irmão, nessa hora, entramos em ação. Batemos uma punheta enquanto olhamos, de butucas arregaladas para os artifícios pecaminosos da nossa boa e gostosa madrasta.

O Célio (apelidado pela turma de amigos aqui do prédio de “absorvente de madame”) é meu vizinho de porta. Moro no 604 e ele, no 605. Segredou com o Mesilato de Doxazosina, o porteiro (um fofoqueiro de primeira linha), que todo dia, depois que a esposa virava as costas e saia para o batente, se punha a tomar tranqüilamente um banho de quase duas horas com uma índia de 20 anos, gostosa, perfumada, corpinho esbelto, tipo a boazuda da Eliana, da Rede Record, e o rostinho de princesa meio parecido com a da Tammy Di Callafiori.
A gatinha, segundo ele, tem mania de usar um invólucro no lugar da calcinha que cabe todinha na palma da sua burrice. E mais: que a safadinha adora pintar uma metade do rosto com carvão e óleo e a outra metade, do nariz para baixo, de vermelho, usando colorau extraído do açafrão. Aprecia pó compacto, blush, rímel, batom e lápis nos olhos. Estuda o terceiro período de História numa escola paga pela Funai e quer se formar em advogada, para defender as causas indígenas. Sem mencionar os peitinhos durinhos e o bumbum empinado à moda Camila Pitanga. A tal beldade já foi miss por duas vezes. Está residindo no prédio ao lado, com uma tia, e a moçada, em peso, está tentando descobrir qual o nome dela, o andar e o telefone. Infelizmente, o Célio não caiu na besteira de revelar mais detalhes.
Mesilato, todavia, com o pouco que dispunha nas mãos, contou para o servente, que contou para o faxineiro, que contou para a Dorinha do 207, que contou para o Alcebíades, que contou para o Nizoral Shampoo, que contou para o porteiro da noite, que contou para o vigia, que sem querer acabou abrindo o jogo para a mulher do Célio.
Aminofilina, a vítima, a traída, a ultrajada em sua honra, a mal-amada, virou bicho. E com razão. Embora lembrasse vagamente Karina Bacchi, poderia, se quisesse, e se desse na telha, ter todos os homens que desejasse a seus pés, com um estalar de dedos apenas. Contudo, era fiel, honesta, vivia de casa para o trabalho e vice-versa. Ao receber o salário no final de mês, entregava todinho nas mãos do marido. Por essa razão, quando soube do caso do Célio, resolveu botar as coisas em pratos limpos.
Segunda-feira, pulou da cama no horário de sempre, cinco da matina. Fez o café, deixou a mesa posta para o filho de uma égua e, às sete em ponto, saiu para o trabalho, alegre, risonha, cantando uma canção romântica do Amado Batista. Fingiu. Na verdade, se escondeu no apartamento da Valpakine Zovira, uma sardenta metida a Meryl Streep, sua companheira de serviço, que morava com a avó, no 90l.
No horário em que o vigia disse que a tal sirigaita, piranha de uma figa, marcava presença, pegou emprestado o rolo de macarrão da Valpakine, desceu feito uma cobra venenosa pelas escadas, dispensando o elevador, e, soltando os bofes, meteu os pés na porta. Nessa agressão esquisita contra si mesma, se arrebentou toda mas, apesar dos hematomas, seguiu adiante.
Precisava lavar a honra. Mesmo que fosse com o suor de seu sangue. Depois, quem sabe, para dar o troco, até botasse um belo par de chifres no desgraçado do Célio. Talvez com o porto-riquenho do 302, uma espécie de Rodrigo Santoro às avessas, que, nos três meses em que morava no prédio, já havia comido todas as solteironas e bem casadas, inclusive a velhota do 103. Antes, contudo, mostraria para o safado do Célio o tipo de mulher que ele estava perdendo, por causa de uma simples amante que arranjara para satisfazer algumas horas de prazer, enquanto ela dava um duro dos diabos para ajudar a contrabalançar as despesas do mês.
Entrou em casa na raça, com vontade, quebrando tudo, inclusive a mesa que havia deixado posta com o desjejum. Fera indomável, entupida até as ventas por um ódio mortal incontrolável e irrefreável, se assemelhava a um furacão, com rajadas de braços a duzentas porradas por minuto. Pegou o Célio todo ensaboado debaixo do chuveiro quente, se masturbando, pinto duro, a boca aberta, feito um pamonha. Pendurada na torneira, de frente para ele, um superpôster, de corpo inteiro, da índia Mayra Ferreira, da tribo Xucuru de Ororubá, de Pesqueira, sertão de Pernambuco, pelada, da cabeça aos pés.

Pois bem! Nessa confusão toda, descobri, sem querer, que o Mauro Cobra Dura, do 505, depois que apanhou a esposa com a boca na botija, transando com o Ricardo, do 1.008, no elevador, entre o oitavo e o nono, resolveu virar a casaca. Antes desse episódio, achava que o camarada levava jeito com garotos, mas, finalmente, cheguei à conclusão que o negócio dele era bem mais escuso e complexo que molestar adolescentes. Que negócio seria esse? Tanto procurei que acabei encontrando. E foi por acaso -, sem planejar. Aconteceu. Mauro Cobra Dura não importunava moleques, nem era pedófilo. Ao contrário: tinha um fraco por meninas de menos de 12.
Flagrei, juro, sem querer, a criatura, com a Leninha, de oito anos, filha do síndico, praticando sexo oral, dentro do carro (ele tem uma Besta e transporta alunos para uma escola particular). O sujeito sabe que eu sei. E sabe porque descobriu que vi e ouvi tudo.
— Chupa, filha, chupa mais. Não pára. O tio vai lhe dar R$ 100 reais. Você não quer? Então, mete logo essa pica na boca e engole tudinho. Vai, vai que estou quase gozando.
Mauro Cobra Dura evita topar comigo sozinho ou subir no elevador se não tiver outras pessoas por perto. Sinto que carrega uma vontade louca de me fuzilar, ou de me dar um tiro pelas costas. Ou de me armar uma cilada pelos corredores. Outro dia, percebi claramente o pânico estampado em seus olhos: parecia tomado de ira, furioso, encolerizado. Eu havia descido para comprar pão; ele também. Na volta, entrou, comigo no elevador a Leninha, carregando uma sacola de compras do supermercado. Será que essas coisas só acontecem com quem está vivo?

No fundo, bem no fundo, não queria ter presenciado nada do que rolou entre o Mauro Cobra Dura e a Leninha. Na verdade, gostaria de estar na pele do Luiz Cláudio e possuir o senso de humor apurado que carrega dentro de si. Ele é que é feliz! Sabe como fazer cócegas nas tristezas e nas melancolias dos outros e espantar a solidão dos que se sentem presos a ela, além do que, não corre o risco de tomar uma facada na barriga, ou tropeçar numa bala perdida. Deve ser gostoso viver de papo furado, fumando um cigarro atrás do outro e jogando conversa fora, papeando animadamente com um elevador de serviço. Ao menos, se fosse o social...


































Mural do esquisito


Kelly tinha um tipo de obsessão rara: comer embaixo do chuveiro frio, ouvindo música a todo volume vinda de um de rádio que ficava ligado num canto da enorme prateleira cheia de perfumes e outras coisinhas para embelezamento do rosto. Passava a maior parte do tempo dentro do quarto, trancada, feito um bicho arredio. As janelas e as cortinas sem abrir, longe do sol da manhã ou da brisa leve que soprava à noite.
Quando não estava empoleirada na cama, assistindo desenhos animados, metia a carcaça no banheiro, que ficava ao lado. De tanto ir até lá, sentar e levantar o traseiro, descobriu que o fabricante da sua bacia de privada fundou o primeiro estabelecimento em 1953, e nele colocou o nome de Hervi, que era primo irmão do Standard, outro do mesmo ramo de mercado que, além de louças sanitárias, construía tampas e assentos e veio a ser o maior concorrente da Astra.
Se tentava conciliar o sono, algo além das suas forças, meia hora depois, a fazia ficar em posição de alerta, sobressaltada, assustada, atemorizada, toda molhada de suor, os olhos esbugalhados, salientes, perdidos no nada, as mãos trêmulas e os pensamentos desconexos, incoerentes, desunidos, presos a visões sorumbáticas e macambúzias, de assuntos que não podia controlar. Um desastre de proporções gigantescas tomava forma em seu mundo interior mal parido.
Por causa disso, qualquer porcaria fora dos parâmetros normais mudava sua vida para sempre. Um cachorro latindo, alguém passando na calçada, uma risada um pouco mais alta, um carro cruzando a rua, um vizinho que acendesse uma lâmpada, um recém-nascido chorando, sussurros no corredor diante dos seus aposentos. A saída para fugir de tudo era a fome. Uma fome incontrolada, inexplicável, estranha, doída, fora de propósito, descomedida e, às vezes, salpicada de cobiças desconexas.
Era comum perturbar o sossego, tarde da noite, da pobre da Maria, a empregada, e confessar que queria um prato de macarrão parafuso com mortadela e creme de papaia. Ou um feijão feito na hora com miúdos de porco acompanhado de suco de goiaba com penas de gambá. Ou, ainda, lentilhas à milanesa e bastante gelo no sangue. Às vezes tinha uns repentes de gente desvairada, parecia meio louca da cabeça, tantas as coisas embaralhadas em seu subconsciente, episódios mesclados de sonhos e realidade, mais divagações que propriamente coisas palpáveis. Noutros instantes, se sentia como uma fada princesa que havia perdido seu suntuoso e nobre encantado. Nessas horas, se punha a chorar copiosamente e a soluçar como uma criança que deixou de ganhar um brinquedo almejado.
— Se tivesse uma garrafa de vinho doce por aqui!...
Entretanto, não bebia nada, nem água de torneira, embora soubesse tudo a cerca de vinhos e consequentemente como curar uma ressaca braba. Lia muito e um dia achou um trabalho sobre o assunto na biblioteca da escola. Roubou o exemplar e levou consigo.
Sonhou, numa dessas noites de vigília, que, por causa da conta alta do telefone, havia tomado uns tabefes de seu velho pai, no meio das orelhas.
— Será que não se pode mais bater papo com os amigos? Da última vez que liguei para o Bob fiquei só uma hora e meia. Ou será que foram duas?
Por essas e por outras, queria morrer. Cada membro que pulsava em seu corpo lhe dizia claramente que deveria estar numa cova com sete palmos de terra no focinho, cheia de vermes peçonhentos e formigas se banqueteando em suas carnes flácidas. Quem sabe caminhando nas profundezas do inferno, de braços dados com o capeta, comendo mariola e bebendo uma Nova Schin, se sentisse mais dona e senhora de si. Comumente, ficava em pé sem cair, meio trôpega, meio zonza, ou deitada, estirada, nua em pelo, sem vontade de nada, querendo tudo, mas sem forças de correr atrás das suas ambições. Desorientada e só, permanecia estática sobre o colchão macio, debaixo do lençol quentinho, imaginando andar de bungee rocket com um carinha que conhecera na Estação Paraíso do Metrô. Pegara o hábito de se masturbar até a exaustão, diante de um poster gigante do Alexandre Frota, pelado, e o fazia com a ajuda de um consolo que também furtara numa lojinha de produtos eróticos quando lá estivera com o Rodrigo, marido de uma promotora de justiça que residia duas casas abaixo.
Por lhe ter feito companhia, Rodrigo procurou ser amigável e cavalheiro.
— Vamos ao cinema ou ao parquinho andar de roda gigante?
— De jeito nenhum!
Na verdade, Kelly preferia beijar de língua a boca do Cardoso, filho do dono da padaria do bairro. Aliás, ele prometera levá-la num final de semana que não tivesse aula na faculdade para experimentar, junto com a Lorraine Lima, sua amiga de longo tempo, as sensações gasosas de encarar as ondas trepada numa prancha de bodyboarding numa dessas praias paradisíacas perdidas pelos quatro cantos do Brasil. Kelly sonhava com esse momento e se sentia nas estrelas só de pensar em ficar sozinha com o rapaz. Ainda mais colada no corpo dele, toda molhadinha e em cima de uma prancha ao sabor de ondas gigantescas. Que espécie de emoção sentiria? Com certeza, idêntica à de estar gozando numa cama espaçosa com um pau bem duro no meio das pernas.
Não fosse tanto e era quase mulher. Mas o quase atrapalhava. A impedia de seguir adiante e ela se via, ora empacada na porta do Cemitério da Consolação com duas velas nas mãos, tentando queimar uma mecha dos cabelos de um menino sapeca, que brincava de acertar pedrinhas nos túmulos com um estilingue de tiras pretas, ora sentada no peitoril do último andar do prédio do Banespa, querendo pular para o vazio que se estendia de braços abertos para a cidade lá embaixo.
— Corra! Corra, seu safado de merda! Corra para meus braços. Vou lhe dar a bandeirada final antes que consiga chegar triunfante ao Viaduto do Chá.
Lembrou do rádio. Sintonizou numa estação qualquer, ao acaso. Tocava uma música de sons engraçados:
— Tribalistas: Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte? Não. Come Away With Me: Norah Jones? Também não. Porra! Rod Stewart, Jota Quest, Leonardo, KLB, Kid Abelha? A puta que pariu? Isso, a puta que pariu! Que se dane o rádio. Era melhor ficar desligado.
— Vocês todos são uns medíocres. Desafinam tão bem quanto os músicos que acompanham as respectivas faixas de seus discos.
Kelly possuía uma beleza rara: lembrava Ana Beatriz Barros em seu esplendor fashion mas, ao mesmo tempo, Dercy Gonçalves e sua cafonice piegas. Isso lhe emprestava um ar de chatice fora do comum, nojento, e lhe transformava numa mulher imatura, precocemente temporã, vazia e cheia de absurdos inconseqüentes. No fundo, desejos mal acabados, picuinhas resolvidas pela metade.
De repente, ruídos estranhos à sua volta lhe põem os nervos em sobreaviso total.
— Quem está aí? É você, Maria? Mãe? Pai? Droga, tem alguém no sótão? Será, por acaso, um fantasma retardatário? Fantasma o escambau. Ainda mais retardatário. Esse negócio de alma de outro mundo é coisa de gente besta.
Veio à memória o que lhe dissera a empregada uma semana antes:
— Ratos, patroinha! São ratos! Milhares deles...
Ratos, ratos, isso mesmo. Os desgraçados desafiavam os gatos da casa. Pareciam Sniff e Scurry duelando com Hem e Haw descritos por Spencer Johnson. Só que esses do sótão pertenciam à Juventude Cristã dos Camundongos Tripudiados Pela Má Sorte, cujo pastor, um sisudo e bonito roedor, cosmopolita, dorso preto - brilhante ventre claro, desse tamanho, com rosto de mercenário -, gostava de afanar os pedaços de queijo da geladeira e era perito em ensinar seus pares a carregarem para o ninho tudo o que encontrassem de gostoso pela frente.
À merda a empregada e seus bichos peçonhentos. Tinha coisas mais sérias a ocupar sua mente.
Lembrou do dia que flagrou a mãe sem calcinha, os olhos vendados, ajoelhada, de quatro, tentando pegar a piroca rígida do pai, com a boca cheia de leite condensado.
— Vem, meu amor! Entra na caverna escura e me queima o anel. Faz de conta que sou sua Luma. Vire meu bombeiro e me enfia a mangueira com o caminhão e tudo mais que tiver direito.
— Primeiro, dá umas boas mamadas, que é para deixar a vara bem lambuzada. O caminhão segue logo atrás.
Só de pensar nessa cena hilariante ficou trêmula e molhada. Daria tudo para estar no lugar da mãe, recebendo goela abaixo o cacete latejante do pai. Para não ver o final do que iria acontecer, preferiu voltar quietinha, pé ante pé, ligar a televisão e assistir um filme na TV a cabo.
— Se essas paredes falassem, o quarto dos meus genitores não seria um local aconchegante onde duas pessoas comportadas pudessem se amar. Parece mais com o portal de acesso a Sodoma e Gomorra.
Pulou da cama. Chato pular da mesma cama, sempre. De regresso ao banheiro, abaixou a calcinha até os joelhos e sentou no vaso. Queria sentar noutra coisa. Algo que fosse duro e quente, não o consolo, rígido e frio que guardava sobre o colchão para a mãe não pegar. Acabara de mandar para dentro uma maçã que escondera no friser. Por certo, nem chuveiro resolveria seu problema. A coisa estava nas entranhas. Bem no meio da vagina, um bicho carpinteiro que coçava e dava fisgadas que empapuçava a musculatura dos grandes lábios. Pensou, então, numa arte. Uma cênica, que fizesse seu coração rir até se escangalhar.
— Vou fazer xixi e colocar numa garrafa de refrigerante. Depois, lacro e envio ao Cardoso. Será que ele desconfiará que se trata da minha urina?
Cardoso tinha cara de tonto. Era, no geral, um sujeito tranqüilo, de bem com a vida, normal, desses que fodem, sem pensar duas vezes, a mulher dos amigos, come pipoca, toma refrigerante no canudinho, adora participar de corridas de automóveis, usa relógio de pulso, bate punheta pensando na Ana de Biase, a salva-vidas do Caldeirão do Huck e mandou fazer um monte de tatuagens por quase todo o corpo só para parecer o tal. Sem falar que condena o aborto, o divórcio, o controle da natalidade e o sujeito que controla o controle do controle da natalidade.
— Meu par ideal, o Cardoso — Minha alma gêmea, como diz o Fábio Jr. Vou dar para ele. Transarei com esse desgraçado até a puta da boceta ficar vermelha de tanto roçar naquele caralho grosso e macio que ele tem pendurado. Sou a receita pronta. Basta o sangue bom ler as entrelinhas de meu coração apaixonado e me pegar de jeito, com força, me jogar na parede, me dar porrada, me botar de quatro, mijar na minha boca, e me chamar de lagartixa. Cederei de bandeja, como se estivesse regada a um Morellino di Scansano. E se o infeliz for um tremendo de um otário, Zé Mané? Não importa. Desde que me castigue duramente as partes afogueadas, e me ponha a nocaute, não precisarei de uma garrafa de Taittinger Brut Prestige Rosé. O licor extraído da minha menstruação dará conta do recado. No fim vai acabar tudo numa boa gozada e eu sei que terminarei como minha mãe, com a rosquinha em frangalhos e o canal do panamá coberto de porra quente e viscosa.
Kelly sorriu largamente com esses pensamentos marotos e, em seguida, arriou as calcinhas de vez e passou ao box. Escancarou a torneira até o fim e meteu, de lado, a bunda branca e seca debaixo do chuveiro gelado. O peido que soltou se confundiu, por um breve momento, com o barulho da água escorrendo, ligeira, pelos buraquinhos do ralo.

































O negativo que deu positivo


A Enriqueta andou tendo uns encontros extraconjugais com o Gervásio, sujeito meio louco das idéias. Aliás, a Enriqueta, mantinha, em casa, a contragosto seu, logicamente por causa dos filhos menores, um marido completamente abilolado, pirado, igual ou pior que o Gervásio, desses que, em pleno dia, costumam uivar como lobo faminto, rasgar dinheiro sem contar até 10 e comer bosta pensando ser arroz regado a caldo de carne. Não durou muito as aventuras da safardana com seu amante, verdade seja dita, apenas uns dois meses. O bastante, entretanto, para Gervásio — que tinha mania de tirar fotografias de tudo e certa vez clicou a própria mãe transando com um vizinho que perdera uma perna em cima de uma cadeira de rodas, e a irmã mais nova, de 12, sendo lambida por um ceguinho de rua, — acomodar momentos pouco ortodoxos, em poses nada santificadas, da Enriqueta, com ele, numa tremenda seção de sexo oral.
Nas fotos, a pistoleira, que lembrava um pouco a Maria Gabriela, dava um trato legal de Madame Pompadour na ferramenta, mostrando, inclusive, gulosidade acima do normal, segurando firme e forte o pé de mesa do Gervásio, como se aquele ato fosse sua última peregrinação terrena antes de bater às portas do purgatório. O engraçado, na história, é que o rapaz, num abrir e piscar de olhos, arranjou uma namorada espoleta que passou a morar com ele. Por essa razão, a nova aquisição, se sentindo dona do pedaço, chegou botando banca. Começou despachando os “casos” do Gervásio. Dessa forma, um monte de ninfetas que vivia em seu pé danou a correr léguas longe dos seus calcanhares.
Não contente, a espevitada deu uma geral no apartamento: revirou, de pernas para cima, todas as coisas que encontrou pela frente, até que, vasculhando umas velhas caixas no quarto da empregada, deu de cara com uma série de fotos da Enriqueta — que conhecia de vista — mais o Gervásio, onde na maioria delas, se via claramente a despudorada atarracada, chupando sorvete de morango com chocolate ao leite condensado, ou dando o caneco, em posições não recomendáveis para menores de 18 anos. No verso de cada uma dessas fotos estavam anotados o número do negativo e uma frase do tipo: “Enriqueta dando um trato no Júnior”, ou “Enriqueta, de quatro, testando a nova porta da garagem”. Foi a gota que transbordou o copo. Isso enfureceu, sobremaneira, os brios da Camilinha Morgado, (forma carinhosa pela qual Gervásio se dirigia à Débora, sua companheira, não só pelo fato dela se parecer bastante com a atriz fluminense, como também porque era seu fã incondicional e por sua causa deixava qualquer coisa de lado, por mais importante que fosse, só para vê-la brilhar, na telinha da televisão) que subiu feio pelas paredes. Não contente, chutou o pau da barraca. Rodou a baiana.
— Vou pegar mais uma desgraçada!
Não esperou o sangue esfriar. Foi na agenda do Gervásio à caça do telefone da vadia. Ligou e mandou bala:
— Gráfica Pega Fogo, boa tarde?
— Oi, de onde fala?
— Gráfica Pega Fogo. Enriqueta, às suas ordens. Em que posso ajudá-la?
— Enriqueta, aqui é a Débora. Sou amiga do Gervásio. Você conhece o Gervásio, ou sabe onde posso encontrá-lo?
— Gervásio... Gervásio... Ah!, sim, é meu fotógrafo.
— Ele é só seu fotógrafo ou algo mais?
- Quem está falando?
- Sou eu, Débora. Queria saber do Gervásio.
- Faz tempo que não o vejo.
- Exatamente quanto tempo?
- Qual seu interesse em saber se sei do paradeiro do Gervásio?
- Bem, vamos deixar de lero-lero. Sou a Débora, namorada dele. E para seu governo, tenho comigo “uns negócios” que vão lhe interessar muito. Gostaria que viesse até minha casa, pode ser?
Enriqueta, a partir dessas poucas palavras, viu sua imagem de boa senhora em papos de aranha. E, mais que isso: se sentiu acuada, retraída, sem saída, de calças curtas. Tremeu feio, em toda a sua base, a mesma que dava de bom grado para o Gervásio e até aquele momento parecia sólida, tal como as torres do Word Trade Center antes de recepcionarem os aviõezinhos de Bin Laden.
— E agora? Que faço? Vou ter com ela?
Praticamente já imaginando do que se tratava, e esperando, evidentemente, pelo agravo de seu quadro, bateu no apartamento do Gervásio. E o pior, aconteceu. Chegou voando.
— Me salve desta, meu bom e amado Jesus Cristo!
Ao ser recebida, antes mesmo de mandar a outra entrar e sentar, Débora quis logo saber a verdade, assim, de chofre:
— Querida, agradeço sinceramente por ter vindo até aqui em resposta ao meu convite. Vamos, contudo, diretamente ao ponto que nos interessa, sem meios termos ou subterfúgios. Você, por acaso, teve ou ainda tem algum tipo de flerte com o Gervásio?
— Não. Somos só bons amigos. Nosso relacionamento é extremamente profissional. Ele fotografa para minha empresa. Só isso. Nada mais.
- Tem certeza absoluta do que está me dizendo?
- Sim.
Diante dessa negativa piegas, Débora abriu uma pasta e de dentro dela retirou um pacote de fotos que exibiu à outra, ao tempo que ria a mais não poder:
— Coisa feia, Enriqueta! Já imaginou seu marido botando os olhos nessa baixaria?
— Cruz em credo! Ele é capaz de me esfolar, não esfolar será pouco. Fará picadinho de mim. Me matará, como se mata uma galinha, com certeza.
— Pode se considerar, a partir de agora, uma defunta fresquinha.
— Não, não, não. Escute, faço qualquer coisa.
— Será que ouvi bem? Qualquer coisa?
- O que você quiser.
Débora fingiu estar pensativa. Levantou, andou de um lado para outro na sala enorme. Acendeu um cigarro. Deu umas tragadas ligeiras. Por fim decidiu fazer uma proposta, aliás, uma proposta bastante indecente. Pediu, na maior cara de pau, por conta, claro, das provas irrefutáveis que tinha em seu poder, uma grana regular. Jurou que só devolveria o material completo, inclusive os negativos, quando tivesse em sua bolsa a quantia pretendida. E deixou claro: não queria cheque nem promissória. Dinheiro vivo, uma nota em cima da outra:
— Isto que você está fazendo comigo é extorsão. Sacanagem, ou melhor, chantagem e das mais baixas. Sou uma mulher casada, de respeito, empresária bastante considerada na cidade, mãe de duas crianças. O Gervásio é que é um corno... sem...
— Alto lá! Corno é o seu marido. Como é mesmo o nome dele?
— Zangão.
— Já pensou no que pode acontecer se isso aqui chegar ao conhecimento do nosso amigo Zangão? Naturalmente, irá querer fazer jus ao nome e, como castigo, deverá se transformar num vespão mal amado, e lhe aplicar uma bela de uma ferroada bem dolorida no escutador de novelas.
— Fará pior. Me comerá viva.
Risos.
— Como você é ligeiramente magra, ele não correrá o risco de ficar engasgado com uma de suas pernas na garganta.
— Deixe de brincadeiras. O assunto é sério. Preciso de um tempo. Levantarei o que me pediu.
- Voce tem cinco dias. Cinco. Nem um a mais.
Enriqueta, amedrontada, e de certa forma encurralada, correu atrás do prejuízo. Dois dias depois estava com o montante na carteira. Ligou para Débora. Queria o mais rápido possível se ver livre daquela rival perigosa e ter de volta as relíquias. O material precioso, onde ela, artista principal e protagonista de mão cheia, brilhava e abafava tanto quanto a Jennifer Lopez e Richard Gere em Dança Comigo? com a exceção de que dispunha, ao alcance dos lábios, para uso imediato, o microfone do Gervásio, na boca, entalado, inteiro, goela abaixo. Sem mencionar o olhar esquisito, maroto, acompanhado de um sorriso safado e travesso, bailando em seu rosto despudorado.
— “Maldita hora” — pensou com seus botões — “maldita hora em que caí na asneira e, por mal dos pecados, “pagando um boquete”, engolindo o tesão da tentação do Gervásio”.
Como toda novelinha caseira, tem final feliz, esta não poderia fugir ao padrão. Enriqueta livrou a carcaça de um tremendo escândalo que, por certo, iria crescer, não na sua boca, mas na garganta profunda do povo e, por via de conseqüência, na língua ferina dos parentes mais chegados. Débora embolsou uma baba considerável, deu até uns trocados ao Gervásio que, feliz da vida, felicíssimo com a sorte grande, pela primeira vez viu regiamente reconhecido e recompensado seu humilde trabalho de fotógrafo.
Depois desse quase incidente, prometeu solenemente à namorada que não mais lidaria com aquele tipo de expediente, nem se daria o trabalho de emprestar “aquilo” que carregava escondido no meio das pernas para ser filmado ou fotografado em lugares, (notadamente bocas, aberturas ou rachaduras consideradas estranhas). Aposentou as chuteiras e os rolos de filmes. Trocou a velha máquina por uma televisão 33 polegadas, tela plana, com controle remoto, saída para DVD, e, de lambuja, um vídeo cacete — mil perdões — videocassete. Para voltar às boas com a sua querida “Camilinha”, embarcou, com a jovem, para um final de semana em Ilhabela, litoral norte de São Paulo.















Peso pesado


O gordão entrou no ônibus e parou na roleta para pagar a passagem. Atrás dele, uma fila enorme impedia o motorista de fechar a porta e seguir viagem. Uma senhora com a metade do corpo para fora, indagou:
— Dá pra ser ou está difícil?
— Estou à cata da niqueleira.
Nessa de procurar a niqueleira, metia desesperadamente as mãos nos bolsos. Busca dali, examina daqui e nada. Um baixinho de bigode gritou, estabanado:
— É pra hoje, companheiro?
— Paciência, meu rei. Só um instante.
Do outro lado, os passageiros que já haviam passado a roleta, como também os que vinham de outros bairros, começaram a ficar irritados. Caras feias e sorumbáticas se misturavam a semblantes irados e carregados de raiva e tensão. A coisa acabaria mal se o coletivo não se pusesse em marcha o mais breve possível. Enquanto isso, o grandalhão, literalmente enroscado nas barbas do trocador, não atinava com as moedas. Por conta disso, tirava, aflitamente enfurecido, das calças largas e sujas de graxa, tudo o que tinha direito: lenços, chaves, cartões telefônicos, carteira de documentos, telefone celular, conta de luz, conta de água, caneta, pacotinho de camisinha e nada da niqueleira.
Dessa confusão desordenada, até uma calcinha de mulher surgiu em cena, o que, por poucos segundos, quebrou o ar pesado do ambiente. Finalmente, o coitado topou com o procurado. A tal niqueleira havia escorregado internamente pelas calças e ficara presa, milagrosamente, entre uma das bainhas dobradas do jeans.
— Desculpem.
Resolvido esse primeiro problema, surgiu um segundo, de proporções maiores. O cidadão entalou os l80 quilos de carne e banha, não conseguindo rodar a borboleta. Novo pandemônio se formou de repente. Um negão desses metidos a engraçadinho, com óculos escuros pendurados na testa e uma fita à guisa de turbante amarrada na cabeça, começou a empurrar, forçando as pessoas a se acotovelarem como animais encurralados, umas por cima das outras.
— Fecha a porta, fecha a porta... Vai... Vai...
— Espera aí, “motô”. Ainda estou com os pés na rua.
E o obeso, coitado, suando frio, nervoso, apalermado e sem saber o que fazer, tentava se livrar do malfadado incômodo, mas sem êxito. A camisa que usava colara no corpo. Dava até para torcer, tamanha a quantidade de suor acumulado nas costas e no peito. Uma senhora caridosa se levantou, solícita, e correu em auxílio do infeliz.
— Me ajudem, me ajudem, pelo amor de Deus. Esse homem vai ter um troço.
Todos os esforços, entretanto, resultaram em vão. O adiposo nem ia nem voltava. Nem rodava, nem desrodava. Um sujeitinho, de brinquinhos nas orelhas, com ar e jeito de quem gostava de sentar rebolando o traseiro numa boneca grossa, dando uma de esperto e aproveitando a confusão, resolveu pular por cima do homenzarrão, sem pagar. O trocador o segurou pelo colarinho.
— Espertinho, alto lá! Comigo aqui você não anda de graça. Vai tirando o “cacau” senão o bicho pega.
E nada do brutamontes arredar pé. Meia dúzia de voluntários, vendo a agonia sem par do desafortunado, se reuniram, pesarosos, a sessentona, engrossando o cordão de auxílio solidário. Até o motorista, condoído da cena patética e hilariantemente trágica, acorreu para prestar ajuda. Mas qual o quê! O gordo, nessas alturas, fora de si, completamente descontrolado, chorava como criança.
— Me ajudem, pelo amor de Deus.
Infelizmente, todos os esforços restaram impotentes e em vão.
— Precisamos baldear os “bonecos” para outro carro.
— Vou chegar atrasado ao emprego. E hoje é o meu primeiro dia — disse um.
— Era só o que me faltava para começar bem a semana — completou outro.
— Não temos culpa desse elefante aí surgir dos quintos!
— Elefante é a senhora sua mãe. Deixa eu sair daqui que o prezado vai sentir o peso da tromba.
Lá fora, uma viatura da Polícia que circulava parou para averiguar o que ocorria. Alguém pediu aos policiais que subissem para auxiliar no desengasgo inexplicável do gordo. Todavia, a coisa complicou sobremaneira. Os soldados não obtiveram sucesso. Pelo rádio, um dos fardados solicitou auxílio ao Corpo de Bombeiros. Meia hora após o tal comunicado, uma viatura de resgate pintou no pedaço fazendo um estardalhaço dos diabos.
Ao redor do coletivo, uma corrente enorme de curiosos se formou, compacta, levada pelo fascínio da desgraça do homem da barriga de baleia.
— Passa vaselina nele que ajuda a escorregar!
— E na sua “bunnada” não vai “dinha”?
Finalmente, o paquiderme se desvencilhou. Os heróis do cinturão vermelho, no entanto, tiveram que usar maçarico para libertar o gorila dos braços frios da roleta que, completamente em pedaços, foi levada para a garagem da empresa, com a bandeira do ônibus virada em “Especial”.




































O terceiro testículo


Pascoalino foi de tudo nesta vida de meu Deus: lanterneiro, vidraceiro, encanador, coveiro, sapateiro, amansador de burro brabo e, no tempo do quartel, corneteiro de tropa. Sem falar no período das vacas magras, quando amargava os dias como camelô, vendendo copinhos de água, calcinhas de nylon e perfumes baratos nas calçadas da Central do Brasil, garantindo o café com pão dos três filhos do primeiro casamento e, ainda, o leite em pó da recém-nascida, raspa de tacho arranjada com a Matilde “Boca-de-onça”. Só não roubou, nem matou. Isso nunca! Aliás, era tão inofensivo que, se uma mosca dessas bem chatas ousasse tirá-lo do sério, nem sequer levantaria a mão para enxotá-la.
Homem humilde e pacato, vivia tranqüilo e alegre. A vizinhança inteira o adorava, principalmente os moleques que se deslocavam de bairros distantes para uma peladinha no campo da comunidade. Devoto incondicional da Senhora da Penha, aos domingos, chovesse ou não, dava os ares da sua graça na igreja do Padre Gregório com quem, depois da missa, se reunia para disputar uma partidinha de buraco. Na sexta-feira, à noite, meteu na cabeça responder a um anúncio de jornal no centro da cidade. Intencionava um servicinho que garantisse a carteira assinada, vale-transporte e convênio hospitalar. Imbuído desse propósito, no sábado, madrugou, mas deu azar, perdeu a pernada. Chegada a vez de ser atendido (havia uns 20 na frente), a vaga de ajudante de pedreiro acabara de ser preenchida. Restava, pois, o longo caminho de volta.
Então aconteceu o encontro. Defronte o Fórum, em direção ao ponto de ônibus, um rapaz alto e de boa aparência, vestido num elegante terno preto, o interceptou. O mancebo não teria mais que 22 anos. Ao deter os passos de Pascoalino, mostrava uma inquietação descomedida. Na verdade, a angústia do elemento escondia um motivo justo. Ia casar e precisava de voluntários para testemunhar. Arranjara um, mas faltava o derradeiro, que se tornara difícil, quase impossível. Muito prestativo, vendo a situação caótica, Pascoalino se prontificou, de imediato. O que deixava a vida de solteiro prometeu, pelo favor, um suculento lanche no bar da esquina mais próxima, em troca da perda de tempo com a abertura de firma, reconhecimento de papéis e demais incômodos causados. As coisas corriam às mil maravilhas. Entretanto, no momento em que o cidadão do cartório convocou Pascoalino para a colhida das assinaturas, tremenda confusão criou forma.
— Seu Pascoalino Setembrino de Jesus?
— Presente!
— Conhece o seu Nicanor Dal Col Vieira e a senhorita Dionísia dos Ambrolhos?
— Não! O Nicanor Dal... Dal o quê?
— Dal Col Vieira.
— Ah! Eu o conheci perto das barcas, ou, mais precisamente, em frente ao Palácio da Justiça, há 20 vinte minutos. Caminhava em direção à Praça Mauá e o distinto me parou e pediu para assinar uns documentos. A senhorita Dionísia estou vendo agora, pela primeira vez.
Nicanor interveio, o rosto vermelho como sangue. Parecia prestes a explodir.
— Não tem problema, meu amigo. É só para constar nos livros. Praxe. Coisas da burocracia, entende?
— Perfeitamente, mas não posso mentir para o representante da Lei. A verdade, sempre a verdade, a qualquer preço. Afinal, nunca vi o distinto antes de hoje. Nem a moça, senhorita Dionísia.
— Isso não vem ao caso. É só assinar... Só assinar... Depois, o lanche... o lanche.
— Continuando, seu Jesus...
— Pascoalino Setembrino de Jesus. Minha mãe foi quem escolheu o nome. Nasci no dia de nosso Pai Celestial, Jesus Cristo, 25 de dezembro. Se acaso tivesse vindo mulher, mamãe colocaria Maria... Maria de Jesus. De qualquer forma, seria de Jesus.
— Cavalheiro, entenda, para nós, esses fatos não têm a menor relevância. O senhor, juntamente com a dona Walfrida Dá Bérgamo, foram convidados para assinarem no processo de casamento civil... Ou melhor, nos proclamas de Nicanor Dal Col Vieira e Dionísia dos Abrolhos.
— Ambrolhos, Ambrolhos, com eme.
O serventuário, de cara feia e louco para atender aos demais que aguardavam numa espécie de saguão, e ir embora para casa -, pois um dia antes havia operado da próstata -, na Santa Casa, e, em vista disso, suas partes baixas o estavam incomodando dentro das roupas quentes, dava a impressão de querer fuzilar qualquer um que se colocasse ao alcance das suas mãos.
— Ratificando, Ambrolhos. Dionísia dos Ambrolhos. Certo? Pois bem, como dizia antes de ser interrompido, o amigo será o meu terceiro testículo, mil desculpas... A segunda...
Foi a gota que faltava para transbordar o copo. Pascoalino desnorteou, perdeu as estribeiras.
— Espere aí! Posso até assinar a papelada para o seu Nicanor Dal... Dal... Para o seu Nicanor se arranjar com a namorada, noiva, ou sei lá que espécie de apito esses dois vão assoprar depois que saírem daqui. Mas ser, ou me passar, pelo que o senhor falou, nem que a vaca pegue resfriado nos pés, digo, nas patas e passe a noite tossindo. Pode recolher o velho cavalinho da chuva.
Sem ligar para o pedido de desculpas do auxiliar que gritava, possesso, agitando os papéis, deu meia volta apressado, em direção à porta. O apavorado Nicanor, suando por todos os poros, pulou na frente, tremendo feito vara verde.
— Pelo amor de Deus. Careço da sua ajuda. Até imploro se for preciso, mas não me deixe a ver navios.
— Para ser testículo? Esqueça! Continuo inflexível na minha determinação.
— Não é testículo, é testemunha. O rapaz errou, mas está lhe pedindo que esqueça o incidente. Olhe só a cara do coitado.
— Não quero saber. Ele falou testículo, testículo, testíííííííííííííííículo, com todas as letras. E, pelo que me consta, esse troço é o...
— É o?
— Saco. Aquelas glândulas gônadas em formato de ovóides que ficam situadas no... no... o senhor sabe, no... no... no... pênis.
— Aquilo é o escroto.
- Esgoto?
- Escroto, escroto.
— Que diferença faz? Não quero ser testículo nem coisa que o valha.
Dona Walfrida Dá Bérgamo, a outra que assinaria nos proclamas, tentou intervir consertando as coisas:
- Desculpe estar me intrometendo. O moço do cartório realmente falou em testículo. Testículo e testemunha se resumem na mesma coisa. Pode acreditar. Olhe aqui.
No que falava puxou de dentro da bolsa uma carteirinha e a exibiu a Pascoalino:
- Está vendo, seu Marcolino?
- Pascoalino, dona, Pascoalino.
- Tudo bem, não precisa ficar nervoso. Veja só, seu Pascoalino. Sou professora de português. Catedrática, inclusive. Asseguro ao senhor que testículo é o mesmo que testemunha. Não mentiria para sua pessoa. Ademais, não ganharia nada com isso.
Nesse clima de tensão e nervos a flor da pele, se achega ao bate-boca a Dionísia, tão ou mais furiosa que o companheiro.
— Nicanor, meu querido, arranja outro. Pelo visto, este senhor - mesmo com a explicação desta boa e amável senhora - continua um... um... um saco, um tremendo de um saco.
— Está vendo? Sentiu o lance? Até sua futura cara-metade acha que tenho aparência de bola de pinto. Trocado em miúdos: me assemelho aos bagos. E eu só queria ajudar. Cooperar é uma coisa, mas me passar por colhões, o negócio descamba e então passa a não dar pé. Ademais, sou espada. Ou melhor, facão.
Sem dar trela à professora, a Nicanor, a noiva dele e aos demais que lotavam a enorme recepção, alguns até rindo a mais não poder, Pascoalino pediu licença e deixou correndo o interior do prédio onde trabalhava o pessoal do tabelião.










Que é isso, companheiro?


Podemos até ser considerado por alguns, como antipatriotas de mão cheia, exatamente pelo fato de professarmos, abertamente, a convicção de que o senhor Juiz Inácio não fará um bom governo. Na verdade, não damos a mínima importância, pois sabemos que, daqui a algum tempo, todos que agora motejam de nossas assertivas estarão como um bando de velhos envergados e descontentes diante das evidências. Nessa hora, assistiremos, de camarote, a grande massa meter a cara no travesseiro e enxugar os olhos no quentinho da estupidez. Professamos tudo isso em vista do quadro desolador que assistimos todos os dias pelos noticiários das tevês. Notem que, antes mesmo de tomar posse, Bula (para entender esse homem será preciso tirá-lo da caixinha e ler atentamente as instruções) já deu mostras de que sua passagem por Brasília caminhará de ruim para péssimo. Daí, para escorregar para o enorme buraco negro, logo à frente, será como a gotinha fatal que transbordará o copo.
Vamos começar por suas viagens. Em Pernambuco - será que alguém lembra? -, durante um discurso populista em Guaranhuns, depois de muito choro (acreditem, não vai haver lenço que vença as lágrimas da torneira — perdão! — do torneiro mecânico), ele gritou para uma multidão de idiotas e embasbacados que Ferrando Ohenrique Carrancoso viajou muito, mas que ele só viajaria pelo Brashil. Antes de assumir o conforto dos Palácios da Capital Federal, a bordo do jatinho executivo Legacy, Bula já tinha passeado pela Argentina, Chile, Estados Unidos, Itália, Guatemala e México (só não foi em Toronto, porque por lá, cana dá). Quem sabe, dia desses, não parta em uma segunda lua-de-melda para as Ilhas Virgens, antes que elas sejam defloradas pelos soldados de Bucho ou pelos fiscais da Secretaria da Fazenda do Rio de Janeiro e de lá não sobre um tempinho e acabe fazendo um “tour” esticado pela misteriosa Al-Sayoud, uma das oito residências do ex ditador Saddam Bucheim às margens do Rio Tigre e, entre as fileiras de palmeiras e outras plantinhas rasteiras, ou ao lado das portas de madeira ricamente entalhadas e ornadas a ouro, com as iniciais SH, (que significa Sou Homem) não pouse para umas fotos ao lado da Torneira Derrama.
Com certeza, os salões iluminados por candelabros gigantes de ouro e cristal vão chamar mais a atenção dos otários e puxa-sacos, que puderem ver as fotos depois de reveladas, se, ao contrário, o senhor Juiz Inácio, na humildade que tenta demonstrar, se deixasse clicar em Porto das Galinhas, numa das muitas piscinas naturais lá existentes. Já que falamos em galinha, e galinha lembra um punhado de milho, quase esquecíamos de um detalhe importante: Mula gosta muito desse tipo de ave. Desde os tempos de São Bernardo fazia questão de deixar evidente sua preferência por frangas, daí ter escolhido, para um de seus ministros, o Precocci, que mais parece (observem com carinho) uma galinácea de macumba fugida do terreiro depois de uma exaustiva seção espírita, sem querermos mencionar, mas já mencionando, a Vilma Roussouff das Meninas sem Emergias e a Carina Pilva, do Seio Indecente.
Continuando com o rosário de demagogias, em Carretés, sua terra letal (onde chorou mais um bocadinho e também ninguém mais se recorda), prometeu criar um conselho para discutir a questão da água para a seca do Nordeste, como igualmente um conselho para a política previdenciária, outro para o combate à violência e outro para o pato (pacto?) social. Na verdade, vão ser tantos os conselhos que os conselheiros, coitados, precisarão formar um conselho interno bruto particular, registrar em Cartório, criar uma sigla - talvez CONINBRUPARTE ou CONIBRUPAR - para se aconselharem entre si. E o mais importante: terão que ter ouvidos e paciência de dois Jós, ou seja, Jojó (soa melhor e fica mais bonito Jójós) para assimilarem tantos ti, ti, tis e blá, blá, blás.
Em fluxo paralelo, observem um detalhe importantíssimo: não é admissível que um chefe de Estado se subjugue a outra nação (como é o caso do Brashil diante dos Estados Unidos) e queira ficar por baixo dela, admitindo que o seu País deixa claro que reconhece a “supremacia americana”, mas, em contrapartida, quer ser respeitado como “líder regimal”. Bula fez isso. Abriu as pernas para Bucho. Cabe aqui um pequeno parêntese. Se Bucho tem a sua superioridade, nós também temos, e, por dispormos dessa hegemonia, não podemos, de forma alguma, ser relegados à condição de líder regimal. Vão acabar, no final das contas, nos roubando a batata — que batata? —, a batuta. Isso mesmo, a batuta! O que é batuta? É aquele bastão delgado, de uns 50 centímetros de comprimento com que os maestros regem as orquestras. E, quando falamos em orquestras, nos referimos às do conservadorismo econômico, a da pouca vergonha, a dos sacripantas, dos velhacos, dos biltres, dos bandalhos, dos salafrários e do nepotismo. Sem mencionarmos a do FMI. Puta que pariu! Nem nos músicos se pode confiar, hoje em dia!
Das duas, uma: ou o senhor George Bucho nos engole ou vai de mala e cuia para o meio do inferno, com todo o seu falso poderio. Se, realmente, tivesse a força que diz possuir, não teriam desarrumado a sua casa bem embaixo de seu nariz, como vimos pela televisão, no espetacular (para eles fatídico) 11 de Setembro. Bem feito! Foi pouco. Osama deveria, ao invés do Pentágono, ter mandado, pelos ares, a Casa Branca, com o Bucho dentro, de preferência, quando estivesse sentado, na bacia da privada. Podem ter certeza: ia ser engraçado, repórteres de todo o planeta, mostrando, ao vivo e em cores, pela televisão, o senhor Bucho, em pedacinhos, misturado ao que restou do seu vaso sanitário privativo.
A nosso ver, Laden gastou munição à toa (perdeu um Boeing prontinho), quando deveria ter aproveitado a ocasião e, além de mandar o Bucho para os quintos, partir, ao meio, o prédio das Nações Unidas, ou o Empire State Building. Infelizmente, isso, agora, não vem ao caso. Fechemos, pois o parêntese aberto. Pois bem: vamos voltar ao Bula. Admitir, pois (como impensadamente ele fez no encontro com Bucho), que os Estados Unidos são melhores que nós é o mesmo que estar na pele da ovelhinha ingênua, que vai, cabisbaixa, confessar suas mágoas com o lobo, ou como o rato, que estanca, de repente, no meio do caminho a fim de cumprimentar o gato. Tal atitude até seria admissível, se Bula fosse um homem de visão pequena e tacanha, mas, como é formado em sociologia – mil desculpas pela nossa gafe -, como é formado em tornerologia mecânica, com mestrado no sul da França e em Camamú, na Bahia, é certo que jamais se sentiria feliz sendo comparado a um desses camundongos que vivem com seus focinhos metidos em esgotos de rua.
O mais estranho e esquisito nessa história toda é que Juiz Inácio sempre se posicionou como um visionário esquerdista do mundo e, dentro desse princípio, notadamente quando a conversa girava em torno dos Estados Unidos, Bula se referia a eles como “um centro opressor neoliberal e a sede da globalização selvagem que destruiu a economia dos países periféricos”. Perguntaríamos, então: por que essa mudança repentina atrelada à vontade inconseqüente de se rebaixar diante do grande tirano? Por que essa alteração de conduta, essa variante esquizofrênica no comportamento?
É possível que, antes de abraçar o poder, o senhor Juiz Inácio jogasse do lado dos demagogos e dos hipócritas só para fazer merchandising em torno de seu nome e, no fundo, tivesse realmente vontade de fazer alguma coisa de útil em prol do seu povo sofrido, mesmo que fosse mandar todo mundo tomar no olho do cu. Contudo, agora que detém as rédeas de Chefe Supremo, (ficaria mais legal chifre supremo) é bem provável que o vírus que emana dessa incumbência lhe tenha, incontinente, afetado as faculdades mentais e ele, hoje, realmente, jogue e faça não só demagogia e merchandising com seu nome, mas também queira que o Brashil entre num labirinto esquizofrênico e vá direto para o buraco. Pelo sim, pelo não, uma coisa é tida como certa: ele está pouco se lixando com a sociedade dos milhares e milhões de assalariados, aposentados, descamisados, desbonesados e cachaceiros, que, acreditando nas suas palavras bonitas, tiveram a coragem de lhe dar um voto de confiança. Por conta disso, e para não tornar o texto mais comprido e enfadonho, não vamos e não queremos mencionar qual será a primeira medida que tomará quando tiver no peito a faixa de presidente. Obviamente, vão acabar nos apelidando de chatos de galochas!
Mas, esperem! Ouvimos gritos. A galera delira. Todos querem que falemos. De verdade? Não nos tornaremos insolentes ou seremos tachados “a depois”, de carne de pescoço? Nem considerados uma pedrinha inconveniente no sapatinho do pobre homem? Pois então, lá vai: Bula (que as más línguas andam apelidando de Gula e Sula, este último por ele se parecer um pouco com a rainha dos caminhoneiros) tornará o Come Zero uma realidade, ou seja, só ele comerá, do bom e do melhor enquanto os outros ficarão de pratos vazios, como pedintes de sacos vazios, com direito de desfrutarem, no tapa, e na raça, os espaços dos semáforos e as portas das catedrais. O poderoso de São Bernardo, sempre com a sua falsa descontração acabará em tempo recorde com a maior epidemia que assola o mundo, custe o que custar, mesmo que, para isso, precise papar, pelas beiradinhas, nossos bolsos, como as criancinhas engolem mingau de maizena quente. Uma das saídas estratégicas é aumentar ao máximo a carga tributária. Quanto mais imposto nos costados da plebe, melhor. A idéia central de Ula é que o povo perca (não só o dedo, como ele) mas o pescoço e a cabeça, porque cérebro e pensamento rápido, poucos têm. A segunda medida, será extirpar, da face da terra, a miséria em toda sua dimensão, não, a miséria como a vemos diariamente, se reproduzindo como as bactérias, mas os desgraçados e filhos de uma boa mãe, que não vemos, principalmente aqueles que, às escondidas e por detrás das coxias, votaram nos candidatos concorrentes e por pouco não fizeram o seu sonho de brincar de presidente ir pras cucuias e parar, por exemplo, nas mãos de Circo Somes ou Garrotinho. Nessa salada podre que será servida, em breve, a toda essa cambada de medíocres que compõe a maior parte da massa falida brasileira, uma coisa é certa e não deve, de forma alguma, ser descartada, nem deixada de lado. Estamos todos carecas de saber: erradicar, de vez, com a tal da come, seja a come-por-aqui ou a come-por-ali, ou com o infortúnio da miséria, é o mesmo que pôr um fim definitivo na corrupção, na bandidagem, no crime organizado, na crise galopante e sem precedentes, no atraso histórico, na desconstrução da democracia e da república, bem ainda no sistema ananicado e claro, no Rambo, que anda (triturando) a Previdência por debaixo dos panos. Daí o rombo, renascendo, a cada dia, como doença maligna e sem cura aparente. Temos plena consciência que nem o Salvador, com toda sua glória e poder, (ainda que assumisse o posto de assessor, no lugar de Waldomiro Diniz) levaria, a cabo, tal façanha.
Pelo exposto, e para terminarmos a conversa, sabem quando o senhor Juiz Inácio Pula da Silva conseguirá a proeza de acabar com as mazelas de nossa terra e colocar o país nos trilhos? No instante em que a Igreja Universal do Reino de Deus retirar o dinheiro que mantém depositado em contas milionárias nos paraísos fiscais e doá-los aos pobres, ou por derradeiro, quando o tal planeta intruso que está vindo lá do espaço (não se sabe a quantos mil quilômetros por hora) se chocar frontalmente com a Terra. Aí, meus amigos, Cula terá, realmente, vencido a maior de todas as epidemias que assolam a humanidade. Todavia, enquanto continuar viajando pelo mundo afora, a fazer discursos que nunca escreveu, a ostentar um carisma escroto e mal parido e em linha paralela, os nossos engravatados e intocáveis representantes não pararem de meter as mãos na grana dos cofres públicos, só nos resta esperar por um milagre.
Até lá, vamos dar gargalhadas. Rir da nossa própria estupidez, como o inocente pasmado e boquiaberto diante do fato de saber que um espertinho deu um baita laço de marinheiro no nó górdio. Rir, claro, rir até o racho do nosso traseiro fazer um calo enorme e se rasgar em peidos vazios e sem expressão de cheiro, porque faltou o feijão com arroz para complementar e endurecer a bosta que dele sai. (Hi! Hi! Hi!...). Não é hilário? Que é isso, companheiro? Deixa a gente gozar da própria desgraça, da infelicidade de todas as famílias, inclusive da sua (Hi! Hi! Hi!...). Nos deixe, de igual modo, escangalhar com os nervos dos maxilares antes que o Brashil afunde dentro dessa derrota tão amplamente difundida e anunciada. Não devemos jamais esquecer que a nação inteira é um grande e gigantesco navio, como o Titanic, navegando em mar aberto, às portas de bater, de frente, com um iceberg do tamanho da dívida externa iceberg esse disfarçado ora de deputado santinho e senador de asinha, ora de ministro com bulsite, na próstata e bispo achacador da miséria brasileira.
Falta tão pouco. (Hi! Hi! Hi!...) Falta tão pouco, tão pouco, como a vinda do Senhor Jesus para arrebatar suas ovelhas. Parem, pois, meus amigos, um instante. Um segundo apenas. Parem e raciocinem friamente. Rir. Rir, sempre, rir sem parar. Por que não? Melhor e menos incômodo que bater uma punheta espiando com os olhos esbugalhados, feito um lheguelhé, para meia dúzia de fotos produzidas da Daniela Cicarelli pelada, na Playboy, rostinho de menina desprotegida, pensando em quem fisgar na semana que vem para dar o próximo golpe do casamento e aumentar os ganhos mensais de sua poupança. Rir, meus prezados, ainda é melhor que pensar que o Bula poderá não se reeleger para segundo mandato, já que a raia miúda, o proletariado, de um modo geral, não passa de um bando de bêbados escorados em garrafas, como essas moscas varejeiras, de padaria.










Do veludo às pocilgas


Quando derrubaram o complexo do World Trade Center, em Nova York, caricaturaram Osama Bin Laden mantendo relações esdrúxulas com George Walker Bush. Nessa charge, o ex-governador do Texas, aguilhoado e suando em bicas, levava a pior e gritava, preso, de quatro, nas garras do cidadão mais procurado pelos cachorrinhos recém-saídos do Pentágono. Esse cartum foi divulgado em todos os jornais do planeta, inclusive pela Internet, a maior rede de computadores do mundo. Vamos conceber a mesma cena tendo como pano de fundo o Brasil.
Osama acaba de apear de um vistoso Cavallo manga-larga marchador que atende pelo nome de Domingo. O animal é um legítimo puro sangue oriundo de uma fazenda do interior de São Paulo. Foi dado de presente a um dos filhos do terrorista pela atual primeira dama da Argentina, esposa do regente tampão Eduardo Duhaldo, junto com um outro potro da mesma linhagem que ficou aos cuidados do líder espiritual supremo do Talibã, mulá Monhamed Omar, dias antes do 11 de setembro.
Osama cavalgou muitas horas por Brasília, ladeado por fortíssimo esquema de segurança: batedores do Exército, agentes da Polícia Federal, membros da Polícia Militar, funcionários da Polícia Civil, guardinhas de trânsito, inclusive os intocáveis Dragões da Independência. O “Profeta do Terror”, sempre ao lado de seu rifle Kalashnikov, acenou para os velhinhos, mandou beijinhos para as patricinhas, distribuiu chocolates, pegou criancinhas no colo e até fumou o cachimbo da paz com o estuprador da estudante Silvia Letícia, Paulinho Paiakan.
Conheceu a Torre de Televisão, a Fonte Luminosa, a Esplanada dos Ministérios, o Palácio do Itamarati, o Palácio do Planalto e o Palácio da Alvorada. Saiu deslumbrado com o tamanho da Estação Rodoviária, representada por um imenso avião pousado. Imaginou, inclusive, que um piloto seu, da rede Al Qaeda, de posse do cock pit, voando num Boeing com aquelas dimensões poderia varrer de uma só vez os Estados Unidos e deixar Bush a ver a sua Big Apple afundar como o Titanic, agarrado num dos pedaços mutilados da Estátua da Liberdade.
Igualmente se encantou com a Catedral, mais ainda, com os espigões do Congresso Nacional, que muito vagamente lhe trouxeram à lembrança as duas Twin Towers de Manhattan. Osama se encontra em solo brasileiro porque indicaram seu nome numa das seções da Câmara Federal para receber uma placa. Com 40 e poucos anos, diploma universitário e conhecimentos de informática, Osama será condecorado, pela primeira vez, por ato de bravura, como o maior estrategista de guerra literalmente vivo.
O parlamentar, autor da façanha — na verdade um bajulador de carteirinha de Bin —, em sua moção, alegou que “Virgulino, o nosso Lampião, perto desse milionário excêntrico, de barba, turbante e jaqueta camuflada passou à terceira categoria e deverá ser lembrado, ou melhor, rebaixado para a posição de mero aspirante a herói, degrau que jamais conquistou.”
“Perdeu terreno e perdeu feio” — continua o deputado federal em uma nota enviada à imprensa — “quando se deixou capturar juntamente com a Maria Bonita e seu bando de cangaceiros, ao contrário de Bin, que deu uma rasteira cinematográfica em toda a frota armada dos americanos posta em seus calcanhares”. O inimigo número um de Bush está feliz, aliás, felicíssimo. Sem dúvida alguma caiu no carinho e na admiração dos pósteros.
Com uma tosse fraca e intermitente, anunciou solenemente a Fernando Henrique, em nome de Alá e de Nossa Senhora Aparecida, que não estão em seus planos transformar a cidade de Juscelino Kubitscheck num amontoado de entulho, até porque se considera muito satisfeito com o povo desse imenso paraíso e sua hospitalidade, que classificou de “ímpar e de primeiro mundo”.
Fernando Henrique, em festivo alarde, e diante da enormidade desse acontecimento, necessita aparecer bem bonitinho na televisão. Deverá, por conta disso, almoçar e tomar chá com o islamita, tirar fotografias nas cercanias da Procuradoria Geral da Justiça, trocar tapinhas nos ombros, com aliados e puxa-sacos e prometer solenemente ajudar os desgraçados e desvalidos do Nordeste.
Correm boatos de que Fernando Henrique convidará Bin Laden para se mudar de mala e cuia para o lado de cá com suas quatro esposas e os 15 filhos. Até agora são meros rumores, nada de concreto. Contudo, pelo andar da carruagem, e como dizem os antigos, “onde há fumaça há fogo”, é provável (mas não impossível) que, futuramente, Laden até se candidate à Presidência da República.
Vamos imaginar, todavia, Osama disputando, hoje, com os candidatos que aí estão, a corrida a esse cargo tão importante. Com certeza, a essas alturas do campeonato, a Roseana Sarney (se não tivesse saído do páreo) teria explodido junto com o marido nos escritórios da Lunnus-Agrima. Quanto ao Luiz Inácio Lula da Silva, com toda a cúpula do PT, estariam esquentando os ossos num imenso caldeirão de lulas nas profundezas do inferno.
José Serra não ficaria de fora e, de igual sorte, detonaria, em alto mar, de braços dados com a Rita Camata e o mosquitinho da dengue dentro de um desses jatinhos executivos fretados pela alta cúpula de seu partido. Ciro Gomes, sem a Patrícia — e mesmo com a ajuda do seu guru particular Roberto Mangabeira Unger — veria cair por terra seu Pilar de sustentação, sufocando seus sonhos aos frontispícios de regente maior.
Itamar, que também disse adeus à cadeira de assento vermelho, perderia o topete, os sapatos, as meias, o Fusquinha e os pães de queijo. Anthony Garotinho, mandaria para o espaço o pirulito de morango, os brinquedos, as calças curtas, a Bíblia e os irmãos da Igreja, além, é claro, da Editora e Gráfica em sociedade com a Rosinha Matheus e Jonas Lopes, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro.
Enfim, Osama ascenderia ao poder sem precisar que um Ziraldo da vida repetisse a sátira picante de Bush, a não ser pela mudança brusca e inesperada do personagem. Ou seja: Bin estaria “ferrando” a todos nós (no sentido látego da palavra) e, ao invés de cair matando em cima de um desses poderosos que infestam a capital do Brasil, ou mesmo de FHC, a nossa bundinha e o traseiro de todos os brasileiros estariam na rota e na reta de seus próximos alvos. Em contrapartida, o bilionário não dinamitaria a Casa da Dinda, nem a Rede Globo do Roberto Marinho, muito menos mandaria pelos ares o Cristo Redentor.
Usaria sandálias havaianas em suas peregrinações, enviaria uma carta ao Papa João Paulo II pedindo a canonização de Elvis Presley e, de roldão, de Anchieta e Padim Ciço. Faria de Sílvio Santos o seu braço esquerdo; de Nicolau dos Santos Neto (o Lalau), o direito; e de Antônio Carlos Magalhães, um terceiro, só para vigiar o que os outros dois estariam tramando. Proibiria novelas, filmes pornôs, futebol, camelôs espalhados pelas calçadas, flanelinhas nos estacionamentos, menores nas sinaleiras e arquivaria as CPIs, que, aliás, nunca deram em nada.
Os ministérios do Exército, da Previdência Social, da Saúde e da Reforma Agrária, dentre outros, seriam comandados por homens-bombas. Criaria uma Medida Provisória para banir com as pipas perto dos aeroportos e seria adotada a lei do olho por olho, ou melhor, do prédio por prédio. As mulheres de zero a 70 anos usariam burcas (pano na cara) e os varões, pakul (chapéu afegão).
Dom Jaime Chamello, atual presidente da CNBB, substituiria a Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo e, ao oposto dela, retiraria do mercado todo os estoques de camisinhas. Preservativos só seriam usados por padres e seminaristas com o intuito de se pôr um ponto final definitivo e conseqüentemente erradicar o pedofilismo praticado com meninos e adolescentes por detrás das sacristias ou, ainda, por debaixo das batinas dos monsenhores e das cuecas sujas de porra dos bispos e cardeais.
Uma vez Osama eleito presidente do Brasil, ainda que à força do seu terrorismo sarcástico, com certeza a Nação mudaria a cara. Teríamos, enfim, um semblante diferenciado dos outros para mostrarmos aos quatro cantos da terra como somos desprovidos do senso prático da estupidez e do ridículo, e ainda, o quanto adoramos “pagar mico” no picadeiro desse circo repleto de sanguessugas e cafajestes. Poderíamos, outrossim, equiparar nossa boa terrinha a um título bastante sugestivo e oportuno de um romance famoso do ilustre baiano Jorge Amado, intitulado “O País do Carnaval”.



































Lembranças de tia Cotinha


“Se a morte é triste, onde quer que ela se abata ai chegará o superlativo da tristeza.”

Salvador Gentile

Lá vou eu, andando a cavalo, debaixo de um sol mormacento, montado num burro. Por mais que force a barra e fustigue o lombo do animal, o bicho parece uma tartaruga empacada. Não deslancha o trote, nem por reza braba. O caminho, embora comprido, até que ajuda um pouco os que por ele carecem cruzar de um extremo ao outro, seja a passeio, seja a serviço. Do vilarejo onde moro, até o povoado onde pretendo chegar, vai bem uns 50 quilômetros. O chão, desde Santo Onofre, até Duas Pedras, meu destino final, é de terra batida, com pequenos trechos cobertos por cascalhos e pedregulhos. A paisagem, em derredor, não muda nunca. De um lado e de outro, fazendas enormes, com árvores de copas frondosas e sombras acolhedoras, convidam ao descanso à beira de pequenas cachoeiras de águas claras e límpidas. Cercas de arame farpado se perdem, abraçadas aos mourões pintados de preto, bem lá longe, onde as vistas não agüentam enxergar. De vez em quando, parado em frente a uma porteira de acesso aos sítios ribeirinhos, um caraminguado, muito respeitoso, tira o chapéu à minha passagem, pede licença e se achega, cabisbaixo, dando os pêsames, pelo falecimento da minha tia.
Aliás, eu faço essa viagem de índio, porque tia Cotinha, irmã de minha mãe e também minha madrinha, havia sido internada, às carreiras, e levada para a UTI, semanas atrás num hospital com um nome famoso que fica na capital. Por causa de um tal de infarto do miocárdio (pelo menos foi o que o médico da família, o doutor Bezerra, diagnosticou), resolveu, sem mais nem menos, dar por terminada sua autobiografia, não saindo da tal da UTI respirando. Achou melhor encerrar sua carreira e, de lá mesmo, virar defunta fresca, partir desta para melhor. A história, pelo menos nesse sentido, não varia nunca. Por essa razão, depois que uma criatura resolve visitar Papai do Céu, por mais querida que seja entre os familiares, os que ficam, tratam logo de se mexer, não deixam o cadáver esquentar lugar na mesa, entre os vivos, ou queimar muita vela, que é, naturalmente, para economizar os bolsos dos familiares.
Morreu, bateu com as doze, adormeceu no Senhor, se dá logo um jeito de arrumar um paletó de madeira, sete palmos de terra e um cemitério de primeira, com canteiros bem cuidados enfeitando as sepulturas. Essas coisas que os exploradores do povo vivem inventando, a cada dia, visando ganhar uns trocadinhos a mais. No caso da tia, depois de confirmado o óbito, meteram sua carcaça num vestido alaranjado, do tempo do ronca, acompanhado de uma blusinha simples, de manga comprida (certamente para não sentir frio na jornada a ser enfrentada), ajeitaram os cabelos à Maria Chiquinha — titia adorava Maria Chiquinha —, passaram um batom de cor discreta nos lábios esbranquiçados e a cobriram, da cabeça aos pés, com cravos brancos e vermelhos. Tia Cotinha deve estar bonita e formosa — meu Deus, que horror! Não é possível que eu esteja pensando uma coisa tão sem pé nem cabeça, justo nessa hora amarga — dentro do caixão adquirido às pressas, na Funerária “Descanse em Paz” do seu Altair da farmácia, e que uma Caravan toda enfeitada de cruzinhas e cortinas roxas fora até as cercanias do rancho fazer a entrega do corpo.
Fico imaginando, enquanto tento instigar o quadrúpede a pisar mais ligeiro, a tia acomodada, sem o sorriso permanente no rosto cheio de rugas, em meio a um punhado de pequenas coisas que detestava. Ela odiava, por exemplo, plantas e, se bem recordo, ainda em vida, havia feito um pedido veemente aos quatro filhos: quando morresse, que não colocassem flores de espécie alguma no ataúde. Tinha alergia. Coitada! A essas alturas, lá do andar de cima, estará muito irada, com o nariz coçando. E quando o nariz comicha, ela dana a espirrar feito louca. Não há nada que corte o maldito inconveniente.
Num momento de terno enlevo, me aflora à memória titia sendo velada. Ao redor do esquife, uma dezena de amigos e parentes compenetrados, choram, de lencinhos coloridos nas mãos, enquanto comem pipoca e bebem refrigerantes. Por estas bandas, quando alguém bate a cacholeta, a pipoca quentinha e o guaraná bem gelado não podem faltar. Faz parte do ritual. Pois bem: os vizinhos mais próximos, nesse exato instante, devem comentar, com profundo pesar, num canto da sala, as ações e os feitos da boa senhora, enquanto outros, ao redor do velho piano, relembram as atitudes de seu coração enorme, aberto, como um porto, a todos os navios e aos infindáveis pedidos de ajuda e conforto dos aflitos que faziam filas enormes na escada do casarão principal.
Na verdade, titia, com sua meiguice, com seu gesto solidário de querer ajudar todo mundo, reabilitava as almas atribuladas. Colocava nos angustiados e aturdidos, uma dose forte de consolo e esperança. O certo é que os pares que iam ter com ela, voltavam, para seus lares, em paz, tranqüilos, como se nenhum problema os atormentasse. Mas, e agora? Sim, e agora? Diante desse vazio que sua partida deixou, quem continuará no papel de apaziguador ou de bom samaritano, confortando com palavras amigas essas criaturas que procuravam diariamente por tia Cotinha? O primo Luiz? O primo Vando?
Pelo menos, esses dois, apesar dos pesares, não perderam o senso e ainda mantém os pés firmes grudados na realidade. Ao contrário de Cassandra e Olegária. Ambas se constituem em um belo par de éguas quadradas, mal paridas, sem um pingo de juízo e coerência nos miolos. Aliás, na cabeça dessas doidivanas só há espaço para os namorados arranjados na capital, dois filhinhos de papai, que não fazem nada, e dão as caras todos os finais de semana, finais de semana que se estendem, até a quinta-feira. Nesse interregno, as duas sem vergonha, ficam grudadas nos caras, na maior putaria, beijando de língua, numa agarração desenfreada, e, pior, fazendo o que não devem, dentro do paiol de milho, enquanto à noite, escura e coberta de estrelas, corre, solta, no infinito.
Com certeza, tia Cotinha irá fazer falta. Muita gente -, além dos familiares próximos, incluindo os casais que vinham tomar conselhos -, sentirá, na pele, a ausência dessa setentona sacudida, que todo dia acordava as quatro e meia, passava a mão num dos cavalos, engatava a charrete e batia para o vilarejo — quase cinco quilômetros e meio, só de ida — para fazer compras. E, na hora em que a turma acordava, lá pelas nove, o café estava em cima do fogão, assim como os pães, o bolo de fubá, a manteiga caseira, tudo prontinho na mesa de cimento que o falecido tio Corrêa construíra. Até o almoço dos peões, que trabalhavam, dando duro na fazenda, como também a gororoba dos cachorros: bofe com polenta.
Mas, quanto a mim, o que direi no instante em que apear e ficar frente a frente com seu corpo inerte? Santo Deus, não sei se agüentarei encarar a tia, estática, parada, fria, indiferente, presa, dentro de uma caixa de madeira esquisita, tenebrosa, fedendo a odores de além-cova com todos aqueles craveiros esparramados sobre seu peito! Não, tia Cotinha não estará no velório, tampouco, em pé, na porta, para me receber. No momento da minha entrada, deverá andar ocupadíssima, transitando, de um lado para outro, anotando, na sua cadernetinha inseparável, quem foi e quem deixou de ir para lhe dar o último adeus.
Tenho plena convicção de que titia transformará o rosto numa indescritível careta que assustará até o capeta, na derradeira hora em que forem colocar a tampa lacrando definitivamente a urna. Tia Cotinha sofria, desde pequena, de algumas fobias inseparáveis. Uma delas, era o medo de ficar no escuro, sem ninguém para bater um papinho. Por essa razão, não posso deixar de pensar no caixão depois de descido à cova fria do cemitério, sem um bico de luz e a falta de oxigênio envolvendo seu nariz. Nossa! Com certeza, morrerá mil vezes. Vai ser uma merda!
Olho para um ponto distante e avisto a casa enorme da fazenda. Mais alguns quilômetros e termino esta excursão forçada. Chego, mesmo, a escutar, de onde estou, a voz enérgica de titia, ecoando pelos campos e pastos verdejantes. Parece furiosa, ralhando com os meus primos:
— Tire esse treco de cima de mim, Vando. Cruz em credo! Cassandra, que diabos estou fazendo, deitada, estas horas, feito uma pamonha? Cadê a Olegária? Já mandou os rapazes almoçarem? Afinal, por que todos olham para mim como se estivessem diante de um fantasma?
De repente, me assusto com um passarinho que voa, baixinho, em minha direção e, por via de conseqüência, assombra o infeliz do animal, que me prostra, boquiaberto, no meio da poeira. Caio de bunda, em meio um amontoado de merda seca de vaca.
— Cavalo burro. De outra vez, vê se derruba a sua mãe.
Fernanda, minha esposa, aos prantos e aos solavancos, me agride, para que pare de gritar feito um debilóide, no meio da noite.
— Que é isso, homem de Deus? Está sonhando? Ficou louco? Pirou? Que cavalo burro é esse que você tanto xinga desesperadamente? E que idéia é essa de me dar um monte de coices? Quase me joga para fora da cama. Vê se aquieta o facho e me deixa dormir, seu jumento de uma figa!






































Os 12 trabalhos de Hércules


Se o mais famoso filho da mortal Alcmena com Zeus, o Senhor do Olimpo, acaso viesse parar na capital do Brasil, a serviço das forças ocultas ou de um partido qualquer de oposição ao Governo, quais seriam suas 12 tarefas? Segundo pesquisas da Data Bolha, publicada não sabemos onde, num dia chuvoso e ensolarado de início de mês, o rapaz teria que se desdobrar para:
I Estrangular, até a morte, o gatinho faminto de Neméia ou, como ficou alcunhado depois do golpe de 1964, como o “Leão do Imposto de Renda”;
II Matar um monstro horrendo de muitas cabeças assemelhado com a Hidra de Lerna, na verdade, o José Votoenterra disfarçado de ET, depois de ter perdido a campanha, junto com a Rita Comeagata, para a Presidência;
III Deter os passos de uma jovem e simpática corça com ares de Cerinéia adolescente desatinada, conhecida nos meios políticos como Paciência Social, antes que alguém decida, realmente, reformá-la, lhe dando um banho a rigor num salão de beleza para que siga em frente com o rostinho bonito, tipo a atriz Pamonha Perdeaarte, aumentando, ainda mais, o tal rombo;
IV Tirar de circulação os envolvidos no esquema da propina na Secretaria da Fazenda do Rio de Janeiro e trazer, num tabuleiro coberto com a bandeira da Porcaria Federal, as provas das contas em bancos suíços para mostrar ao público que este País continua sendo território de delinqüentes e de otários da pior espécie;
V Roubar a churrasqueira da residência oficial do vice, José de Alemmar (Bula descobriu que, ao oposto do Palácio da Alvorada, Alemmar desfruta de confortos extras, ou seja, dispõe de um bom lugar para assar umas pelancas de carneiro), e, depois de encher bem a pança, bater tranqüilamente uma peladinha com os amigos no campo de futebol existente dentro das cercanias do seu pequeno paraíso;
VI Extirpar o grupo de aves antropófagas permanentes de combate ao narcotráfico que Mogno Mata, saído dos pântanos da Estinfália, insiste em manter vivo, circulando por Brasília, não necessariamente para acabar de vez com o esquema das sogras, mas porque será mais um grupo de desocupados e de elite a mamar nas tetas da Federação com carteirinha da Secretaria Nacional Anti-sogras;
VII Capturar vivo o touro de Creta, que lança chamas pelas narinas; Hércules certamente teria dúvidas em distinguir se esse bicho seria o bigodudo do José Semlei, pai de “Saraminha”, ou do montador de escutas telefônicas clandestinas, o cacique baiano Toinho Tapioca Magalhães;
VIII Decepar a cabeça das éguas antropófagas de Diomedes, ou seja, arrancar, a unha, a goela dos radicais livres que desafiam o PT e atormentam o tranqüilo sono de Juiz Inácio, bem como a TPM de sua querida esposa;
IX Apresentar para a primeira dama, dona Marrisa Lenotícia da Silva, a máscara de Berger, secretário-executivo da Casa Viril (que também é dentista). Esse sujeito, cujo patronímico é meio estranho, atende, quando o chamam, por Swedenberger Barrosa e, ultimamente, anda desfilando com um simulacro cirúrgico na cara pelos corredores do Palácio do Planalto, onde, por incrível que pareça, chegou a assustar duas secretárias novatas de gabinete, que o confundiram com a bichinha americana e bolinadora de criancinhas inocentes conhecida nos meios artísticos como Michael Jackson;
X Trazer sob cerrado cabresto o imenso rebanho de bois e vacas (nomes carinhosos pelos quais são conhecidos os membros da classe média e operária nos meios palacianos), de modo a evitar que algumas camadas desse proletariado (ou dessa população ralé) levantem os braços ou dêem o grito de guerra contra o sistema pouco ortodoxo do atual presidente ou a ele venham promover focos de sublevação ou anarquismo, principalmente quando a equipe gastonômica anunciar o aumento estapafúrdio e disparatado do novo salário míiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinimo e, por via de conseqüência, da cesta básica e do gás de cozinha, bem como das taxas de telefone, água, luz e outros serviços essenciais;
XI Recuperar as três maçãs de ouro do Jardim das Hespérides — trocado em miúdos: manter, a pleno vapor, a trindade principal de impostos criados pelos regentes anteriores para arrancar, à força, na pressão moral e no tapa, o dinheiro mirradinho do bolso dos contribuintes sem ter que jogar, “a posteriori”, a culpa no ministro Precocci, da Faizemenda, ou do presidente do Banco Centauro, Henrique Milrrelles, alegando que, em suas viagens oficiais, o cidadão reserva, no avião, quatro lugares para posudos seguranças particulares; e,
XII Apoderar-se do cão Cérbero, guardião das portas do Senado Fedemal e do Congresso Batimal. Dizem as más línguas que esse trocinho tem quatro cabeças, 14 pares de olhos, cauda empinada que lembra muito ligeiramente Ferrando Callor de Melho e o pescoço de ganso parecido com o de Fernandinho Beira Riacho.
Diante disso tudo, se Hércules conseguir realizar todas essas façanhas, com certeza não será citado em estorinhas “a depois”, como um simples fortão musculoso saído sem mais nem menos das páginas da mitologia (porque, ainda, quando era um bebezinho, matou duas serpentes e as fritou para saborear como tira-gosto junto com a mamadeira). Ao contrário, será lembrado igualmente como o vereador José Trilho, da Câmara Municipal de Quixeramobim, Município do Estado do Ceará, que encaminhou um projeto de lei de sua autoria para ser violentado — perdão — votado, no qual obrigava os donos de jumentos a pintarem o traseiro de seus animais com tinta fosforescente. Por isto, entrou para o livro dos recordes. Claro, nosso Hércules também terá seu nome gravado no Guiness Book a ferro em brasa, sem precisar passar tinta ou outro material chamativo na bundinha seca, nada parecida com a do “Deus Brasileiro”, o Antônio Fazgrundes.

































Eu, por mim


Socorro! Procuro, com certa urgência, mulheres de 20 (no máximo 25) que aceitem levar para casa um cara com 49 anos, alguns fios brancos caídos sobre a testa, artrite nos dedões dos pés e herpes na polpa esquerda da bunda. Bom de cama. Aliás, ótimo de cama! Interessadas em conferir, descobrirão que, ao me deitar, só acordo dia seguinte. Mesmo assim se o relógio despertar repetidamente no pé do ouvido.
Ronco desesperadamente, como se fosse um carro de corrida envenenado e com o escapamento aberto fazendo zoeira no meio da rua. Não seria melhor esclarecer, logo de cara, que sofro de apnéia, ou seja, uma praga que atualmente aterroriza cerca de 15 milhões de brasileiros? Pois vá lá, já vomitei.
Solto puns fedorentos, tendo em vista comer no almoço e na janta muito repolho cru. Embora falte pouco para galgar os degraus dos 50, tenho uma cabeça bastante aberta, com anos de estrada (afinal, acumulo mais de l7.500 dias vividos desde l9 de março de l953). A vasta experiência é o meu melhor cartão de visitas.
Antes que haja confusão, comunico que direcionarei as atenções para um público feminino altamente selecionado. Não sou um chato de galochas, tampouco um burro, a ponto de viver parado no tempo, à espera de um punhado de capim suculento. Me considero bastante astuto e calejado em assuntos da atualidade.
Discuto filmes, falo de atores famosos como Tom Cruise, Ralph Fiennes, Denzel Washington, George Clooney, Mel Gibson, Antonio Banderas, Nicole Kidman, Carrie-Anne Moss e Mark Wahclherg. Escrevo crônicas e poesias. Leio de ponta a ponta os jornais que me caem às mãos. Particularmente, acho que as melhores publicações são exatamente aquelas que chegam até nós por empréstimo ou esquecimento, principalmente porque não precisamos mexer nos bolsos.
Devoro, sem ficar engasgado, Jorge Amado, Paulo Coelho, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Autran Dourado, Zélia Gattai, Rubem Braga, Sharon Naylor e o cubano Pedro Juan Gutierrez. A sua “Trilogia suja de Havana” me encantou deveras. Tomo café com leite em demasia: 24 horas viajo on line nos bules que encontro disponíveis pelo caminho.
Carrego defeitos e vícios como todo ser humano dotado de duas pernas, orelhas e óculos de grau. Um deles é tirar sujeira do nariz e limpar o dedo nos móveis perto das pessoas metidas a importante. Uso, no dia-a-dia, cuecas e lenços brancos. Nunca visto sapatos apertados. Faço a barba logo que saio da cama, mas jamais penteio os cabelos.
Atiça meu lado nervoso, a graus elevadíssimos, o sentar numa mesa (não importa se refinada ou simplória) e conviver com criaturas promíscuas que fumam, falam gritando, cospem no chão ou despejam palavrões a torto e a direito. Detesto feijoada, beringela, pastéis folheados de Catupiry e milho, bardanas refogadas, creme de papaia com licor de Cassis, presunto, chuchu com ricota, dobradinha, carne de porco (de porca, idem), caviar e frango ensopado.
Em paralelo, como com apurado paladar croquetes à italiana, almôndegas recheadas com queijo e uvas passas, arroz puro cozinhado na hora, batatinhas fritas, carne moída e uns petit-suisse de goiaba ou pêssego. Não dispenso um Bourbon, Whisky com Jim Beam, Wild Turkey ou o chileno de butique conhecido como Stonelake, da Vinã Val Divieso.
Fico irritadíssimo quando botam um rap para tocar acima do normal ou ligam a televisão em atrações vazias nos moldes do Ratinho e Faustão. As pegadinhas do Sérgio Malandro e o quadro “Prova de Fidelidade” do Te Vi na TV, do João Cléber, me causam asco e repugnância a níveis intoleráveis. Se tivesse poder, colocava esses hipócritas num enorme vaso sanitário, puxava a descarga e ainda limpava os dentes com a cordinha que libera a água.
Questiono freqüentemente sobre as reformas políticas, a Previdência falida, a criminalidade, a segurança, o dólar, o aborto, as cotações das ações nas Bolsas de Valores, novelas, horóscopos e números da loteria. Recentemente, um amigo comum, o Marco Antônio, me presenteou com um pôster gigante da Cindy Crawford nuazinha em pelo, mostrando como veio ao mundo nos mínimos detalhes.
Se fosse escolher, preferiria a Michelly Mechri, a garota Sukita que apareceu numa das edições da Playboy. Como em cavalo dado não se olham os dentes e tampouco se questiona se a ferradura é nova, colei a moça num dos vidros do quarto, de frente para um prédio de apartamentos bastante movimentado. À noite, ao me recolher, sou atropelado por um amontoado de olhares indiscretos com conexões diretas vasculhando cada detalhe superexposto e bem dotado da top model.
Sem falar nos binóculos e lunetas surfando por detrás das ondas das cortinas transparentes. É engraçado descobrir como existem otários e desocupados se prestando a fantasias dessa natureza. Imaginem uma pá de homens tidos como adultos e civilizados se masturbando, de pica dura, fascinados por um pedaço de papel colado numa janela.
Meu irmão Cláudio, muito esperto, costuma enxergar cifras na ponta do nariz. Surgiu com uma idéia que, a princípio, achei ligeiramente cretina. Amadurecendo, depois, vislumbrei indícios fortes que poderiam até desembocar num final lucrativo. Cobrar dos levianos para ver a beldade mais famosa da Revlon.
Estou cogitando a propósito disso e penso, seriamente, afixar um cartaz, logo abaixo da modelo, com o valor estampado em números garrafais em remuneração às espiadelas clandestinas. Tão certo como a morte de Cristo no Calvário, e a soltura de Barrabás -, o ladrão que roubou a calcinha da mulher de Pilatos -, ganharei um bocado de dinheiro, mais que o Sílvio Santos, Bill Gates e Jerry Yang juntos.
Talvez programe um novo tour pela Veneza dos meus sonhos. Claro, não tão ligeiro quando da primeira vez em que lá estive e não aproveitei lhufas alguma. Até o milênio passado, me considerava um perfeito rei. Meu IFFM, ou Índice de Facilidade para Ficar com Mulheres, gerava mais ibope do que o Domingo Legal, do Gugu. Até porque, nos finais de semana, impreterivelmente, o negócio terminava em shoppings, boates, cervejas com os amigos e garotas, muitas garotas de programa, dessas benesses de agências, até deitar com uma vagabunda — não sei se francesa ou inglesa. (Só sei que toda hora ela sussurrava em meus ouvidos: “Look, let me talking about it”).
Nessa troca vertiginosa de suores e odores fedorentos a caça-pacotes me deixou, de herança, uma gonorréia braba. Quase perco o charme e, por via de conseqüência, o instrumento de diversão vai, de vez, para o beleléu. Por conta dessa ninfeta, passei semanas visitando o farmacêutico e tomando, no lombo, injeções doloridas, um verdadeiro coquetel de antibióticos.
Pronto! Dei a ficha. Acredito, nessas poucas linhas, ter desfiado um pouco da minha personalidade. Suficiente, a meu entender, para, no geral, qualquer uma que resolver entrar na disputa pelo meu coração idealizar a galáxia formada ao meu redor. Costumo enfatizar: tenho uma das mãos na terra e a outra no céu. Na verdade, os pés no chão, a cabeça nas nuvens e os pensamentos na gostosona da Linda Evangelista me chupando com calda de chocolate.
Às vezes, me sinto como Eróstrato, aquele sujeito abestalhado que no século IV aC incendiou o templo de Diana, em Éfeso, considerada uma das sete maravilhas do mundo da época e, como ele, para perpetuar meu nome, tenho desejos de sair gritando pelas ruas feito um imbecil abobalhado. Noutras ocasiões, me fecho no deplorável da imbecilidade humana, à procura de algo bom e mastigável dentro de mim. Meu fígado, talvez, ou a bunda da minha empregada, frita em manteiga bem quente.
O fato é que procuro saborear sempre o romantismo dos tempos de outrora. Tal como se estivesse ligado, por uma espécie de cordão umbilical, às coisas boas do passado, um mundo maravilhoso se descortina ante meus olhos. Por isso, ando em harmoniosa comunhão com meu ser interior. Em fluxo paralelo, mando flores às ex-namoradas, cartinhas românticas, tele-mensagens com palavras carinhosas e continuamente peço perdão pelos maus procedimentos quando da vida em comum.
Aprecio os pares andando de braços dados e se sentando, de mãos juntas, na pracinha, para contemplarem a lua clara no céu. Em vista disso, e por tudo o que fiz relacionar, as jovens que estiverem a fim de me conhecer poderão usar da criatividade para o primeiro encontro. Nada fashion demais.
Sugestões? Por quê não? Aqui vão algumas dicas: podem vir com as camisetas floridas da Ellus ou da Maju e bolsinhas da C&A, brincos da Ar Bijoux e presilhas nos cabelos. Não vou deixar de apreciar as vestidas de tule com strech e estampas zebradas da Einstein. Igualmente serão vistas com simpatia e elegância as senhoritas que chegarem trajando shortinhos bem curtos, ou vistosas calças brancas e, nos pés, botinhas vinho da Shoestock.
Por certo também arrasarão as que pintarem no pedaço de peitos abertos e expostos aos meus dentinhos aguçados, cheias de amor e carinho, com disposição extrema para contatos imediatos de primeiro pau, digo, grau, desde que íntimos e bem prolongados. Rogo, porém, a todas, que à meia luz de quatro paredes, desaprisionem a fera existente no mais profundo do íntimo, e não tenham medo de ser feliz.
Um recado de suma importância: usem calcinhas minúsculas. Toco às nuvens arrancando essas pecinhas com os dentes a uma velocidade rapidíssima, mas com taxas de compensações ótimas. Certamente farei os gritinhos mais tímidos se perderem no vazio da garganta. E outro esclarecimento que considero por demais importante: a escolhida — e só haverá uma — será eleita, de cara, na bucha, a princesinha do meu castelo particular, com direito a café na cama, banho com rosas e perfumes e massagens relaxantes, dentre outras coisas.
Serei, na verdade, uma espécie de escravo e senhor. E, como tal, derramarei leite condensado em seu corpo e sorverei tudo com a ponta da língua. Em seguida, deslizarei cubos de gelo pelo pescoço e pela barriguinha até à altura do umbigo, fazendo uma rápida escala no Chuí. Por derradeiro, cobrirei com mel de abelha ou calda de chocolate as partes secretas e... e... Loucura! Onde estou com a cabeça?
Acham, realmente, loucura, dar vida e asas ao meu frenesi inimaginável? Tudo isso é doideira? À guisa de explicação, tenho a dizer o seguinte: piração, vamos colocar assim, fica melhor. Piração seria o acordar no meio da noite tocando guitarra num banheiro escuro, o sangue agitado, as mãos trêmulas comprimindo as cordas, a alma estabanada e, para completar, uma platéia de rolos de papéis sanitários, tampas e bacias de privadas me aplaudindo freneticamente. Sem dúvida alguma, não me sentiria no Madison Square Garden.






































O povo com a boca no trombone


O caso da cueca

A estudante Maria Vai Com As Outras, do Alto dos Cogumelos, nos escreve reclamando do elevado número de buracos em sua rua. Diz ela que existe uma cratera tão grande, perto do portão de sua residência, “que, outro dia, seu namorado, ao sair apressado e literalmente pelado (por causa da chegada dos seus futuros sogros), deixou cair a cueca que levava nas mãos, junto com a calça e a camisa. Até agora — continua —, apreensiva, o pessoal da Prefeitura não conseguiu localizar a peça.” Quer saber, dentre outras coisas, se o rapaz tem direito a algum tipo de indenização.
Resposta: Sim, claro! Inclusive, Maria, segundo nos relatou o ouvidor do bairro, seu namorado pode pleitear que a Prefeitura lhe reembolse, além do montante em dinheiro (referente à peça perdida), com uma consulta a um médico oculista e, conseqüentemente, com o aviamento de uns óculos de grau, a fim de que o fato não se repita, e, sobretudo, para que ele, possa enxergar melhor os lugares onde pisa. E, veja bem: se ele preferir, a Prefeitura pode providenciar, também, o pagamento das mensalidades, pelo período de um ano, de um sistema de alarme de segurança bastante sofisticado que soará com antecedência de cinco minutos toda vez que seus pais (os sogros dele) estiverem chegando.


Piolhos a dar com o pau

O ajudante de caminhão João Engole Cobra, do Jardim dos Caixões Sem Alças, furioso, denuncia uma infestação maligna de piolhos na escola onde estuda seu filho mais novo, o Joãozinho Engole Minhoca. Diante desse problema, o cidadão deixa no ar uma pergunta sem resposta: “Que providencias tomar, de imediato?”
Resposta: Fomos procurar a direção da escola e a assistente pedagógica do colégio (que muito educadamente nos recebeu) mandou um recado bastante simples com uma solução fácil de ser seguida. Disse a jovem para que passássemos para seu João o seguinte: que ele corte, ou arranque, a cabeça do filho, e a deixe em casa, de preferência num congelador ou de molho no álcool. Tal medida evitará problemas com piolhos futuros, além do que, ela, assistente de pedagogia, não terá mais que ouvir as lamúrias e as cantadas (notadamente, as cantadas) de um desocupado que, não tendo mais nada a fazer, a não ser encher a cara de cachaça, ficar bêbado de não se agüentar em pé, aparecer depois somente para torrar o saco e a paciência, como se ela não tivesse mais nada a fazer dentro da escola.


Insuportável

O estagiário em suprimentos de estoques de supermercados Juraci Costa Bigorrilho, do Bairro dos Degolados, reclama do mau cheiro nos fundos do prédio que faz divisa com seu terreno. Diz ele que, naquele local, funciona uma divisão da Delegacia de Homicídios, para onde são levados presos da Justiça para serem submetidos a torturas e sevícias. No auge do desespero, nos pergunta: “O que fazer?”
Resposta: caro amigo, diga ao pessoal da tal Divisão de Homicídios que você não se importa nem um pouquinho com o tratamento que eles dispensam aos detentos, porém, que o delegado responsável desove os “presuntos” em lugar mais afastado ou você abrirá a boca e contará tudo à imprensa.


Entupimento

A cabeleireira Filomena Mão Leve, do Ribeirão dos Camundongos, se queixa do entupimento constante de seu lavatório. Diz que já é décima vez que chama o encanador, mas o “problema continua persistindo”.
Resposta: Sugerimos que a senhora troque, urgentemente, de profissional. Da próxima vez, tente contatar um bombeiro hidráulico com uma mangueira que possa ser introduzida no seu lavatório, de preferência que saia direto na caixa de esgoto.


Escuridão

O militar da reserva Pedro Cabeça de Mosquito, do Parque das Oliveiras, solicita a substituição de uma lâmpada de mercúrio queimada no poste principal da Alameda Psiu.
Resposta: O ouvidor municipal Hélio Deixa Como Está nos informou que a Secretaria de Serviços Urbanos já trocou a referida lâmpada por mais de 20 vezes. A câmera de segurança instalada no local flagrou por diversas vezes um motoqueiro, entregador de pizzas, que, todas as noites, após fazer a entrega nessa alameda, encosta a moto, trepa no poste e carrega a lâmpada e, no lugar, ainda deixa um bilhete mal escrito com os seguintes dizeres: “Da próxima vez, seus trouxas, coloquem uma lâmpada mais forte. Mamãe sofre das vistas e as porcarias que tenho levado para casa não estão resolvendo o problema dela.”


Interurbano

O senhor Cincinato do Amor Magoado, da vizinha cidade dos Cabritos, distante 80 quilômetros da capital, quer saber por que suas ligações locais “continuam sendo cobradas como se fossem interurbanos feitos para outras localidades”?
Resposta: A Companhia Telefônica, em nota a nós enviada, esclareceu que, de acordo com uma regulamentação da Anadeuoanel, isso vai continuar acontecendo, até porque, as prestadoras, de um modo geral, precisam arranjar dinheiro para cobrir os rombos enormes deixados por gestões passadas, bem como pagar uma porrada de funcionários fantasmas e garantir a sobrevivência dos diretores atuais. Por assim, a grana tem que sair, custe o que custar, dos bolsos de alguém. Nada melhor que venha dos babacas que utilizam os serviços da empresa.


Medicamentos

O desempregado Armando Em Cima de Alguém, do Jardim dos Anfíbios, reclama da falta de um medicamento nas farmácias de seu bairro. Alega que sua irmã é epiléptica e precisa de um remédio de uso contínuo chamado Lamotrigina, que “está sempre para chegar, mas nunca chega”.
Resposta: O superintendente de Ações de Saúde pede ao Armando que troque sua querida irmã por uma pessoa que sofra de uma doença mais popular, cujo remédio não seja tão difícil de ser encontrado nas prateleiras das drogarias.


Porcos

O vendedor de cacarecos Jorge Pensa Que Pode, da vizinha cidade de Carapicuíba, reclama de uma criação de porcos sem autorização da saúde pública na Avenida Celeste, onde mora com a família. Diz ele que o “mau cheiro está insuportável. Não sei mais a quem apelar. No chiqueiro também vivem cachorros doentes e gatos cegos.”
Resposta: O Diretor do Departamento de Posturas da Prefeitura de Carapicuiba nos garantiu que irá pessoalmente sentir o “mau cheiro” alegado. Roga, entretanto, que o senhor Jorge aguarde uns dias, até que passe seu resfriado e o nariz volte a respirar normalmente. Tão logo esteja com os ditos orifícios nasais em forma, e as vias descongestionadas, fará uma visita ao local e, se realmente o “mau cheiro” estiver insuportável, notificará, ato contínuo, o proprietário da pocilga para que dê um banho nos animais e procure, com urgência, um oculista especializado em gatos.


Clandestinos

O operário de máquinas Eliseu Passa Bem, de Santana, denuncia comércios irregulares próximos ao seu condomínio, na Avenida Voluntários da Pátria. “Os ambulantes vendem cigarros e bebidas alcoólicas bem na porta do prédio, o que é proibido por Lei. Além disso, furtam energia elétrica do relógio central da garagem, deixando fios expostos.”
Resposta: O administrador regional de Santana, senhor Tadeu Tadando, nos informou que todos os comerciantes irregulares foram notificados. A fiscalização está fazendo plantão noturno no local. Todavia, parece que existe um fiscal que comanda a área e recebe umas “propinas” por baixo dos panos. A idéia é prendê-lo em flagrante mas, até agora, o espertalhão conseguiu escapar sem ser pego com a boca na botija. Quanto ao problema da iluminação clandestina, o melhor é o cidadão cortar os fios, sem ser visto, pelos meliantes. Ou, por outra, contratar um bom eletricista e pedir a ele para arrancar e esconder todos os relógios da caixa de barramento (incluindo o central, da garagem), torcendo, claro, como bem observou o senhor Tadeu, para que os demais moradores do prédio não entendam o gesto de maneira errada e acabem lhe cobrindo a cara com uma série de porradas.









Conselhos para um bom relacionamento a dois



1° — Acorde sempre de mau humor. De cara bem fechada. Chute, aparentemente com raiva descomedida, o lençol para um dos cantos da parede. Jogue os travesseiros no cachorro. Se não tiver cachorro ou qualquer outro animalzinho, como um gato, por exemplo, mire o focinho da mulher;
2° — Ao entrar para o banho, largue os chinelos pelo caminho. Faça o mesmo com o pijama. Ao deixar o chuveiro, molhe tudo o que for possível. Esqueça a toalha ensopada sobre a cama, principalmente se estiver arrumada com a colcha nova de seda enfeitando o quarto. Pule sobre ela, como se estivesse praticando exercícios físicos e amasse o mais que puder;
3° — Deixe o pente com um chumaço de cabelo na janela e a escova de dentes espetada no bolo que a empregada fez para os meninos. Atire os sapatos para dentro do box, ponha as meias sobre o refrigerador e a cueca em cima da mesa. Se usar o barbeador, coloque o aparelho sujo dentro do forno de microondas;
4° — Espalhe, pelo chão, guimbas de cigarros, não sem antes bater as cinzas por cima dos móveis. Ao mandar as roupas para lavar, “esqueça” nos bolsos da camisa o telefone da namorada ou o e-mail da secretária do dentista;
5° — Escreva um bilhete romântico (com palavras bem melosas) marcando encontro com a vizinha gostosona da frente e deixe, dobradinho, em um lugar tão visível que até um cego dos ouvidos possa encontrar. Se tem por hábito tomar o desjejum com a turma reunida, dê um jeito no bule do café. Ponha fogo alto nele e espere até o bicho ferver e transbordar;
6° — Na geladeira, esparrame a manteiga e o chocolate das crianças, emborque as garrafas de água sobre a gelatina e meta os biscoitos no congelador. Uma coisa que deixa a patroa fula da vida e subindo pelas tamancas: esconda, bem escondido, os objetos mais comuns que ela costuma usar logo que entra na cozinha;
7° — No almoço de domingo, quando a família em peso estiver sentada ao seu redor (principalmente os sogros), reclame, em tom alto e com grosseria, do arroz mal cozido, do feijão sem sal, dos ovos crus, das batatas fritas com excesso de óleo. Invente que flagrou uns bichinhos na salada de alface. Deixe claro que, se as coisas continuarem nesse pé, você a devolverá à casa materna embrulhada num monte de jornais velhos e, em seguida, arranjará duas gatinhas de 18, em substituição;
8° — Se cultiva o hábito de viver em restaurantes, uma dica considerada infalível: peça sempre o prato que você mais aprecia; nunca deixe prevalecer a vontade dela. Não vale a pena. Encha a pança e apronte uma confusão para não pagar as despesas. Se o ambiente é desses chiquérrimos, onde moças de fino trato e com uniformes padrão aparecem para atender aos pedidos se derretendo em mesuras, passe a mão no traseiro de uma, descaradamente e, em seguida, se desculpe, com uma risadinha sarcástica;
9° — No dia do aniversário da “rainha do lar” (nunca esqueça o aniversário da rainha do lar, isso é muito importante) presenteie-a com uma vassoura de piaçava acompanhada com um lembrete escrito num pedacinho de papel, de preferência do rolo sanitário: “Voe para os quintos. Não esqueça os filhos.”;
10° — Um detalhe também importantíssimo: se você se amarra em lembrancinhas, compre uma roupa íntima (as mulheres adoram ganhar calcinhas). Quando a infeliz se achegar para o rala-e-rola, (calcinha nova sempre rende uma trepadinha), observe, de cenho franzido, que a peça “caiu” melhor no corpinho da Rafaela ou de uma mulher qualquer de sua predileção. O nome da puta é problema seu. Invente na hora.
11° — Faça amor, de preferência à noite, ouvindo um rap em volume bem estrondoso. É aconselhável, nessas horas, plugar a televisão numa partida de futebol (se possuir tevê por assinatura, ligue num jogo transmitido pela televisão portuguesa). Ria muito e finja que teve um ataque de histerismo súbito com o narrador e obrigue a companheira a gargalhar junto. Aplique com vontade umas boas chineladas na bunda dela. Chineladas ajudam a descontrair e entrar mais rápido no clima;
12° — Se sua parceira é dessas que apreciam se envolver em encontros de amigas que vendem produtos de porta em porta, nos dias de sábado, não bronqueie. Faça de tudo para, no final do bate papo, levar a mais engraçadinha em casa. Mande um amigo chato e bom de conversa telefonar para sua residência (na hora da novela das oito) para passar uma cantada de mentirinha na sua mulher;
13° — Deixe, à vista, perto do aparelho de telefone, de preferência, uma folha de jornal com anúncios de boates, inferninhos e garotas de programa, com alguns marcados com círculo vermelho (que é para chamar logo a atenção);
14° — No dia em que o time do seu coração estiver em campo, convide os amigos mais íntimos para assistirem em sua casa. Prepare um churrasco. Reúna-os na sala. Ligue bem alto a televisão — e o rádio, ao mesmo tempo — e deixe rolar cerveja à vontade. Beba além da conta. Pise com força nos pés dos convidados, belisque as orelhas das esposas dos seus colegas e solte uns puns sonoros. Vomite em cima da cunhadinha e escarre pelos móveis afora. Apronte um vexame para ninguém esquecer o pesadelo;
15° — Na hora de se recolher, não tome o banho costumeiro. Deite ao lado de sua esposa bem sujo. Se costuma dar um trato nela antes de cair no ronco, diga um montão de palavras carinhosas, salpique os abraços com um “não fico sem esses seus beijos com gosto de pecado” e feche com chave de ouro: cochiche no ouvido da infeliz o nome da outra;
16° — É aconselhável, outrossim, antes dos carinhos, uma cagada bem fedorenta. Arrebente, antes, com o fiozinho da descarga. Se sua privada for dessas modernas, de botão, passe Super Bonder para emperrar o mecanismo que libera a água ou feche o registro geral;
17° — Enfim, por derradeiro, se nada disso abalar o casamento, e o seu relacionamento continuar forte e duradouro, use o golpe da padaria. É muito simples e prático o tal golpe da padaria. Infalível, segundo os entendidos em meter a colher na vida alheia. Como é que funciona? Anote: ao sair de manhã cedo para comprar o leite, volte três ou quatro dias depois, alegando que foi vítima de um seqüestro relâmpago perto da banca de jornais. Jure, de pés juntos e até chore, se preciso for, mas deixe claro que os meliantes roubaram a revista Playboy com a primeira dama Marisa Letícia Lula da Silva, peladinha, na capa e, de sacanagem, levaram, de lambuja, os pãezinhos quentinhos que você havia comprado para as crianças.

(Lisboa, janeiro a março de 2000)